Mohsen Makhmalbaf: "Eu choro muitas vezes pelos sírios. Começaram a pedir liberdade e agora todos os matam e maltratam"

O novo filme do iraniano Mohsen Makhmalbaf é dedicado aos sírios mas começou a ser escrito há nove anos. É sobre a ilusão do poder, sobre o “agora” e o “futuro”, sobre o bem e o mal que somos.

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O Presidente que já não o é percorre o país que julgava seu disfarçado de músico de rua, com o neto e herdeiro a fingir-se menina. O Presidente leva às costas um preso político e finge que também ele passou pelos calabouços. O preso que vai às suas costas não pode pousar os pés no chão, a tortura foi muita mas pior teria sido se o tivessem descoberto: ao contrário de todos os camaradas, escapou à execução por ter assassinado o filho e a nora do Presidente, os pais do neto que agora finge ser Maria, a das aulas de dança, de quem nunca deixará de ter saudades, e que já não pode chamar ao Presidente o que sempre foi ensinado a chamar-lhe.

“O que é tortura?”, pergunta o menino. O Presidente quer largar o preso que carrega às costas e matar o homem que lhe matou o filho com as mãos, mas não pode fazê-lo. Pode, mas não o faz. Já não é o Presidente, já cantou, bebeu e fumou com todos aqueles homens que mandou para a prisão sem nunca hesitar, por mais novos que fossem, por mais inocentes, decentes ou honrados compatriotas que fossem. O Presidente já é um deles, mesmo que não o saiba.

O Presidente é o último filme do realizador iraniano Mohsen Makhmalbaf, há muito tempo a viver no exílio. Aos 58 anos, já foi tudo e o seu contrário. Tinha 15 quando criou o seu próprio grupo de guerrilha para derrubar o Xá Reza Pahlavi. Preso aos 17 anos por tentar esfaquear um soldado, saiu da cadeia cinco anos depois, durante a Revolução Islâmica de 1979, quando o Xá fugiu do Irão.

O novo regime dos ayatollahs tentou – e, até certo ponto, conseguiu – criar um cinema ideológico, islamista, e Makhmalbaf chegou a ser um símbolo desse cinema. Depois afastou-se, de novo na oposição, e tornou-se a prova do fracasso da tentativa dos islamistas para matar o cinema, o cinema que é mesmo cinema, aquele que reflecte o Irão e faz do Irão o que o Irão é. De “realizador do regime” passou a dissidente e foi porta-voz no exílio de Mir Hussein Mousavi, candidato da oposição derrotado nas eleições fraudulentas de 2009, que deram a reeleição a Mahmoud Ahmadinejad e provocaram o chamado Movimento Verde, um dos precursores das revoltas árabes.

O Presidente é fruto destes últimos anos, turbulentos. “Começámos a trabalhar no guião há nove anos. Depois aconteceu o movimento em 2009 e reescrevemos tudo. A seguir vieram as Primaveras Árabes, e voltámos à escrita. Tentámos que funcione como uma metáfora do agora e do futuro, dos sistemas da ditadura e da revolução, que são sempre iguais. Presidente ou rei, xá ou ayatollah, revolução, golpe de Estado. O Presidente podia ser Saddam Hussein, [o ayatollah Ali] Khamenei [Guia Supremo iraniano], Muammar Khadaffi, Estaline… Este não é um filme iraniano, é universal.”
 
Medo do povo
Makhmalbaf viaja muito e calhou ao Ípsilon entrevistá-lo por telefone quando já passava da 1h no hotel russo onde estava hospedado, perto da fronteira com a China, nove horas de diferença. Estava acordado mas ensonado, cansado mas disponível. Respondeu a tudo e demorou-se nas respostas. O recepcionista é que não ajudou, sem grande vontade de atender a chamada.

“Nós”, os que começaram "a trabalhar no guião há nove anos”, são o realizador e a mulher, Marzieh, co-autora do argumento. Como sempre nos seus filmes, este é um negócio de família. A filha mais nova do casal, Hana, assina a edição. O Presidente foi filmado na Geórgia com actores georgianos e isso remete-nos para as revoluções coloridas da última década no Leste da Europa, para a Ucrânia, para tudo e para todos. A caminhada dos presos políticos, uns às costas dos outros, a partilharem o que não têm, remete-nos para as caminhadas dos refugiados que hoje nos entram todos os dias em casa.

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Uma revolta começa com uma faísca – terá sido aquele momento em que o neto ordenou que se apagassem todas as luzes? – e depressa se torna num fogo que arde no caos. Não é só o Presidente que foge. Todos fogem de todos. Todos, quase todos, querem vingança. Soldados violam noivas, roubam os mais pobres, matam quem se engana no lado da estrada. O Presidente assiste a tudo. “Eles querem matar-nos”, explica ao neto. “Quem são eles?” Eles são todos os que “antes gostavam de nós e nos admiravam”. O barbeiro e o seu filho, o ex-preso que regressa a casa para reencontrar o amor da sua vida, a mulher que o fez sobreviver a tudo, para não suportar continuar a viver quando a descobre com outro e com um filho bebé a chorar lá dentro. “Hoje, são todos meus convidados. Ela vai fazer uma festa e convidar a aldeia toda.” Não vai. O tempo passa, a vida continua, quem não está fica para trás. Quem sobrevive chora, às vezes calado, às vezes aos gemidos, compulsivamente.

“Num sistema de ditadura, cultiva-se o silêncio, a ignorância. O poder vive sempre do medo do povo. Quando uma revolução começa, acaba a ignorância”, diz Makhmalbaf. Mas o medo, o silêncio e a ignorância deixam cicatrizes, feridas abertas. E então acontece a Síria ou a Líbia ou o Sudão. “Quase cinco anos de guerra na Síria e um milhão de mortos. Foi por isso que eu fiz este filme. Os espectadores ficam com esta experiência. É para isso que serve a arte, para educar, não para entreter, mesmo se eu faço filmes para o grande público e quero que toda a gente vá ver este.”

Pelos sírios
Os filmes de Makhmalbaf chegam ao Irão, como todos os filmes proibidos feitos por iranianos dentro e fora do país. Há o mercado das cópias-pirata e, com a chegada à presidência de Hassan Rohani, em 2013, até há um ministro da Cultura, Ali Janati, que disse no ano passado ao PÚBLICO que quer ver Isto Não é Um Filme, de Jafar Panahi, o primeiro dos filmes “proibidos” do cineasta desde que foi condenado a prisão domiciliária e impedido de filmar (Táxi, o último, esteve até há dias em exibição em Portugal). Nos últimos dois anos, Makhmalbaf até já teve um dos seus filmes exibido no canal farsi da BBC, com uma audiência de um milhão.

Este é um filme que só um iraniano podia ter feito, assim, como os iranianos fazem filmes e, sem nos apercebermos, nos ensinam tudo sobre o mundo e as pessoas. Não sendo um grande filme iraniano, cumpre o propósito de nos poder ensinar mais qualquer coisa. Este “filme não é só para o Irão, é para todas as pessoas, é sobre a dignidade humana”, explica o realizador. Como são todos os bons filmes, como é todo o maravilhoso cinema iraniano.

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Mohsen Makhmalbaf vive há muitos anos no exílio, mas os seus filmes chegam ao Irão via cópias-pirata, como todos os que ali são proibidos

“Nós nascemos no Irão, mas na verdade nascemos neste planeta. A arte não tem nacionalidade. Nascemos para sermos felizes, saudáveis e para termos amigos, para além de encontrarmos um sentido próprio, uma forma de cumprirmos um objectivo qualquer”, diz Makhmalbaf. Perdemo-nos a meio do caminho. “Hoje, ninguém está feliz, toda a gente está sempre em competição, queremos outro trabalho, menos trabalho, mais férias, vemo-nos como um fracasso.”

Makhmalbaf pode parecer um pessimista, mas está longe de o ser. “Se olharmos para os últimos 30 anos, as condições de vida de muitos milhões de pessoas melhoraram imenso, a educação aumentou, a pobreza diminuiu. Mas, ao mesmo tempo, parece que temos mais violência. Eu choro muitas vezes pelos sírios. Começaram a pedir liberdade e agora todos os matam e maltratam. E todos nós somos, de alguma forma, culpados. Há fundamentalismo em todo o lado, em todas as religiões, até no budismo… Eu não penso é que isto seja o fim.”

O Presidente também não quer aceitar que o seu fim tenha chegado. Cego ao ponto de enviar a família para o exílio e permanecer depois do golpe; o neto e as saudades que já sente da Maria fazem com que fique para trás também e tenha o levar na fuga. “Não te chega o que fizeram ao nosso filho? Vá, ele que fique. Ao menos com ele, sei que virás ter connosco”, diz-lhe a mulher, ao embarcar para o jacto onde ele já não conseguirá chegar, no mesmo hangar de onde terá de fugir para não ser morto a tiro pelo mesmo oficial que minutos antes lhe beijara mãos e pés.

O Presidente é um filme cheio de acção e algo simplista. “Eu quero afectar as audiências”, repete Makhmalbaf. Vai conseguir. “A arte pode provocar mudança desde que seja verdadeira.”

O Presidente é o Presidente e o seu neto, actores e personagens. “Quero voltar para o palácio." Mas o palácio dourado onde cada membro da família é vestido e calçado por um empregado diferente “já não é nosso”. “Quero a Maria.” Vais “esquecer a Maria em dois dias”. “Ainda não esqueci a Maria.” Onde “é que vamos?”. Ter “com a mamã e o papá ou então com a avó”. Quero “ir ter com a mamã e o papá, porque é que eles nunca mais vieram? Tenho saudades deles”.

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O Presidente manda muitas vezes o neto tapar os olhos, ou tapar os ouvidos e olhar em frente. Mas em frente há gente a ser morta a tiro por um casaco ou só porque sim. O Presidente também tem a sua Maria, mas esta recusa ficar-lhe com o neto. E então o Presidente tem o levar consigo, de atravessar o país a pé, à boleia de uma carripana, num autocarro, com presos políticos às costas, numa carroça. Despedir-se dos presos, um a um, para os reencontrar. O velho mais inteligente e o homem mais sensato. Tanta inteligência e sensatez que o Presidente não merece.

O velho mais inteligente vai tapar os ouvidos ao neto enquanto olha o mar. O homem mais sensato vai tentar salvar a cabeça do Presidente. “Todos somos responsáveis uns pelos outros, por nós e pelos outros. Se esquecermos a língua, o que é que nos separa? Temos todos frio, calor, fome, sede, sofrimento. Às vezes, estamos noutra casa e pensamos que estamos noutro mundo. Tornámo-nos prisioneiros desta falta de consciência, de memória, estamos ocupados nem sabemos com o quê. Há a guerra e há a paz. Há a humanidade. Toda a gente consegue perceber isso”, diz Makhmalbaf.

Há um carro a andar entre a multidão, que primeiro aplaude e depois persegue e ataca. Há um velho a tentar alcançar o mar com o neto pela mão para escapar à morte certa. Há um miúdo sempre a dançar com saudades da Maria. Há um velho que toca viola e canta e acaba a beber da mesma garrafa e a fumar do mesmo cigarro daqueles que dias antes oprimia. Há o mar, que o velho e o miúdo conseguem alcançar. Há quem queira pegar fogo ao Presidente, que agora é só um velho, como todos os velhos. Há quem queira salvá-lo para nos salvar a todos. Há um velho que diz ao miúdo para olhar para o mar, e o miúdo já não é o herdeiro do Presidente, é só um miúdo, uma criança como todas as crianças. Há um homem sensato que tem uma ideia: “Vamos obrigá-lo a dançar." Talvez resulte, talvez nos salvemos.

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