Recusado pedido de transferência de embriões após a morte do homem

Proposta para incluir questão sobre transferência post mortem no formulário de consentimento informado foi recusada pela maioria dos membros do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida.

Foto
Casal tem nove embriões congelados numa clínica de Lisboa. DR

Um casal que estava a fazer tratamentos de fertilidade numa clínica de Lisboa chegou a conseguir uma gravidez após a transferência de dois dos seus embriões, mas acabou por haver um aborto espontâneo. Restaram nove embriões congelados que o casal tencionaria usar para ter um filho. Mas o homem morreu. A sua companheira pediu agora autorização ao Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) para engravidar do companheiro morto. O pedido foi recusado.

Em Portugal já tinha havido dois casos de mulheres que pediram para usar o esperma congelado dos seus companheiros, depois de estes morrerem. As inseminações não avançaram porque a lei portuguesa não permite esta hipótese, obrigando inclusivamente à destruição do sémen congelado se o homem morrer.

Mas o caso que agora chegou ao conselho é único porque é o primeiro em que já existem embriões do casal, resultantes da fecundação dos ovócitos com esperma em laboratório. E, quando há embriões, a lei permite que possa haver transferência post mortem. Mas apenas se o parceiro masculino tiver deixado escrito de forma expressa essa sua intenção, algo que não aconteceu.

O caso remonta a 2009, altura em que o casal, que vivia em união de facto, estava a fazer tratamentos de procriação medicamente assistida numa clínica privada de Lisboa. Em Março desse ano deu-se a transferência para o útero de dois embriões, mas a gestação terminou com um aborto espontâneo.

Em Julho desse ano o homem, a quem tinha sido diagnosticado um linfoma 12 anos antes, morreu. O casal tinha ainda nove embriões congelados que teria intenção de usar para tentar ter um filho. Os pais do homem morto declararam à clínica que não queriam que o material biológico do filho fosse usado para dar origem a uma gravidez.

Eurico Reis desconhece os motivos porque a parceira veio, tanto depois da morte do parceiro - a decisão do conselho é deste Verão e o pedido deu entrada no ano passado - pedir a transferência de embriões. No pedido, a mulher refere apenas que todas as questões legais com os pais do companheiro, que dizem respeito a questões de herança do falecido, estavam resolvidas.

O CNPMA recusou o pedido por não ter havido manifestação explícita da vontade do homem numa declaração escrita, como obriga a lei portuguesa, que quer que estas situações “sejam muito, muito excepcionais”, explica o responsável. O legislador quer “que não haja duvidas que essa era a vontade livre, voluntária, esclarecida”, esclarece o presidente do CNPMA. O caso é susceptível de ser discutido em tribunal, ressalva.

Neste caso concreto, na sua opinião pessoal, “houve um acto de vontade”, porque tinha havido a transferência de dois embriões. “Em termos emocionais e psicológicos esta situação é semelhante aos casos em que o parceiro morre durante a gravidez”, defendendo que “o investimento psicológico” que é feito quando um casal inicia tratamento é semelhante ao casal que tenta engravidar sem recurso à medicina.

Eurico Reis considera que a não obrigatoriedade de abordar esta questão junto dos casais em tratamento acaba por impossibilitar a concretização de transferências post mortem em Portugal. “Há aspirações destruídas”, porque a questão nem sequer é abordada, diz.

Por essa razão, Eurico Reis propos ao conselho que o formulário de consentimento informado passe a incluir explicitamente esta questão, perguntando-se ao parceiro masculino se autoriza a que, caso morra, haja transferência de embriões. Esta proposta foi recusada por maioria, nota.

Na sua opinião, ao propor que a questão da transferência post mortem constasse dos formulários de consentimento informado – que os casais têm obrigatoriamente de preencher para responder a outras questões – obrigava-se as pessoas a pensar nesta questão. “Isto não pode continuar a ser ignorado. É importante ser discutido de forma racional”.

Para Eurico Reis, “ao contrário do espírito pragmático dos anglo-saxónicos, que pensam nos problemas antes de eles acontecerem, culturalmente nos portugueses existe um medo atávico e irracional de discutir estas questões”, comenta. “Há contingências na vida. As pessoas devem pensar nelas antes que aconteçam”.

Teresa Almeida Santos, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, admite: “Não me passa pela cabeça perguntar a um casal jovem e saudável, à partida, ‘e se morrer…’. Parece descabido”. “Culturalmente causa desconforto abordar esta questão, há uma tendência para se desvalorizar”.

A médica diz que a questão da morte é abordada, por exemplo, quando é feita a congelação de gâmetas de pessoas com cancro (que assim querem acautelar a sua capacidade de procriar após os tratamentos oncológicos). Nestes casos fala-se abertamente porque “a probabilidade da morte é real” e pergunta-se o destino que querem dar aos seus gâmetas caso morram (nestes casos, a lei permite a doação a outros casais, doação para a ciência, ou a sua destruição).

Neste caso, em que o casal já tinha embriões, a médica diz que “compreende a situação da possível mãe” mas não concorda que esta seja uma questão que deva constar das declarações de consentimento informado existentes. “Esta é uma declaração de tal forma séria que exige uma reflexão específica”.

Na sua experiência clínica, “os casais preenchem os formulários de consentimento informado com alguma ligeireza”, considerando que é necessário “reflectir sobre esta questão numa declaração à parte”, que não esteja misturada no meio de outras questões que são sérias – como o destino a dar a embriões excedentários – mas que não são como esta, que significa, na prática, que o homem tem de “dar autorização para conceber uma criança órfã”.

“A questão é tão séria que exige reflexão específica”, mas não vê com maus olhos a criação de um consentimento informado exclusivo para esta questão, para que “gradualmente ela se comece a discutir”.

Outros casos em Portugal

2012: Primeiro caso em tribunal

Uma mulher portuguesa, de 33 anos, reclamou em tribunal a propriedade do sémen congelado do marido para poder engravidar através de inseminação artificial, mas acabou por desistir do processo. A viúva temeu ficar posta em causa a sua privacidade depois de o caso se ter tornado público. O processo deu entrada no Tribunal do Entroncamento.

A portuguesa avançou para tribunal cerca de um ano depois de o seu marido, de 40 anos, ter morrido com cancro. Antes de os tratamentos de quimioterapia começarem, o casal, que sempre quis ter filhos, tinha decidido congelar sémen como forma de salvaguardar a fertilidade do casal, que poderia sair afectada pelos tratamentos.

2011: Companheiro morreu num acidente

A fertilização do óvulo com espermatozóides, para formar o embrião e depois tentar a gravidez, tinha dia marcado numa clínica de Lisboa. Só que, antes de ter lugar, o homem morreu num acidente. Mesmo assim, a mulher informou o centro de que queria que o processo avançasse. O Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida não autorizou. A lei portuguesa apenas permite a transferência post mortem de embriões e apenas se houver vontade expressa do pai falecido por escrito. Neste caso, os “sogros” comunicaram à clínica que se opunham à ideia, uma vez que discordavam da ideia de ter um neto de um filho morto.

2001: Susana quis retirar o sémen do marido

Em 2001, uma portuguesa manifestou a vontade de engravidar do marido morto, mas o objectivo de Susana, que estava casada há três meses quando ficou viúva, era que fosse retirado sémen ao marido morto através de punção testicular, uma prática que é proibida em Portugal e que tem que ser feita 24 a 36 horas após a morte.

Depois de consultar um advogado, Susana concluiu que o seu desejo não era concretizável por não existir legislação que autorizasse a prática. A extracção cirúrgica do esperma é uma prática aceite em alguns outros países do mundo, permitindo que viúvas, noivas, namoradas e até os pais procurem este processo quando um homem morre inesperadamente.

O primeiro caso reportado de extracção cirúrgica do sémen ocorreu em 1980, envolvendo o caso de um homem de 30 anos que ficou em morte cerebral depois de um acidente de carro, escreveu a revista científica Human Reproduction. O primeiro nascimento por esta via foi reportado em 1999.

Sugerir correcção
Comentar