Arcebispos a favor da morte assistida

É a qualidade de vida que importa, não a sua quantidade. Tal como já Séneca afirmara no séc. I.

Os debates acesos que, ao longo dos anos, o Reino Unido tem tido sobre a morte assistida - assisted dying é o termo agora utilizado, estando excluído qualquer recurso à eutanásia, evitando-se o termo “suicídio” e reservando-se esse procedimento apenas para doentes terminais -, parecem ter muitas hipóteses de finalmente conduzirem a uma lei despenalizadora, quando cumpridos todos os passos parlamentares necessários.

Em Julho de 2014 a chamada Assisted Dying Bill, proposta por Lord Falconer, trabalhista, foi levada à Câmara dos Lordes, aí obtendo grande apoio. No entanto, as eleições gerais de Maio de 2015 quebraram o habitual desenrolar do processo de aprovação final de uma lei. Para que o processo recomeçasse com a menor perda de tempo possível, um membro também trabalhista da Câmara dos Comuns, Rob Marris, propôs um projecto muito similar ao de Lord Falconer, e, se tudo decorrer como expectável, vai ser amplamente discutido na Câmara dos Comuns em 11 de Setembro. Desde 1997 que esta Câmara não debatia a morte assistida.

Foi neste contexto que, em 11 de Julho 2014, a uma semana do grande debate na Câmara dos Lordes, o antigo e muito respeitado arcebispo de Cantuária (1991-2002) Lord George Carey, publicou uma carta no Daily Mail explicando as razões pelas quais mudara de opinião, deixando de ser um adversário da morte assistida na forma prevista por Lord Falconer, sendo-lhe até favorável. Essa sua posição foi há pouco reiterada num breve vídeo posto a correr no Youtube pela Associação activista inglesa Dignity in Dying (13 de Agosto deste ano).

Na carta, o ex-arcebispo dava conta de como a releitura das Escrituras e os casos de morte difícil lhe tinham abalado posições anteriores, ao ponto de afirmar que, “ao obedecer de modo estrito ao ensinamento sobre a santidade da vida, a Igreja podia de facto estar a sancionar a angústia e a dor – precisamente o oposto da mensagem cristã”, remetendo para a Dignitas quem não queria assistir à sua lenta desintegração e tinha dinheiro. E quem não o tinha? E numa altura tão importante e delicada como a da morte, remetia-se a pessoa para o desconforto do estrangeiro? De um modo muito honesto e frontal pergunta se, quando usava a velha argumentação contra o tipo de morte assistida previsto por Lord Falconer, não era a compaixão e a dignidade humana que sacrificava no altar da doutrina e do dogma. Na sua mente tinham ficado gravadas as palavras de uma antiga paroquiana em morte difícil, nos inícios da sua vida de clérigo: “é a qualidade de vida que importa, não o número de dias que se vive”. Fora também nestes termos, acrescento, que Séneca, no séc. I, colocara a questão.

No vídeo, Carey começa por admitir que, apesar de bons cuidados paliativos, há quem sofra uma morte terrível. Em seguida, mostra-se confiante em que se possa fazer uma lei com garantias suficientes para que os mais vulneráveis não sejam vítimas de abusos. Finalmente, fala de compaixão: não se deve obrigar o outro a aguentar a dor ou a desintegração pessoal dizendo-lhe que se trata de algo “nobre”. Pelo contrário, dar às pessoas o direito de decidirem morrer com a sua noção de dignidade é a seu ver algo “profundamente cristão e moral”.

A 12 de Julho de 2014 era a vez de outro clérigo importante da Igreja Anglicana, o arcebispo emérito Desmond Tutu, antigo presidente da Comissão da África do Sul para a Paz e a Reconciliação, que tanto sangue impediu de correr no pós-apartheid, prémio Nobel da Paz, amigo de Mandela, que o considerava  a voz do que não têm voz, escrever no Observer que também era a favor da morte assistida. Afirma: “Respeito a santidade da vida – mas não a qualquer custo”. Umas pessoas defendem o princípio da qualidade da vida, admitindo, se necessário, a morte assistida; outros, sentem-se bem apenas com os cuidados paliativos. Porque não dar liberdade de escolha? Pergunta: “para quê partir no nevoeiro da sedação quando há a alternativa de estar alerta e verdadeiramente presente e com os entes queridos?”.

Pretendendo que os médicos ajudem a morrer melhor, promete: “Tive a sorte de passar a vida a trabalhar pela dignidade dos que vivem. Agora, desejo comprometer-me com a questão da dignidade dos que estão para morrer”. Em Portugal, quem mais quer fazer seu este lema?

Professora aposentada da UMinho (laura.laura@mail.telepac.pt)

Sugerir correcção
Ler 2 comentários