O que está em jogo nestas eleições legislativas

Uma coisa é certa, quanto mais expressiva for a votação num partido, mais legitimidade terá para implementar o seu programa.

Portugal, ao contrário das grandes federações como os EUA ou a Alemanha, tem apenas uma câmara no parlamento. Nesses países, que têm duas câmaras e por vezes maiorias políticas distintas, a legislação, ao ter de passar por ambas as câmaras, tem de constituir um compromisso mais alargado. Aqui, não apenas temos uma câmara, mas uma incapacidade de perceber a importância de compromissos políticos, sobretudo em situações em que os resultados eleitorais não fornecem uma maioria absoluta a nenhum partido (ou coligação pré-eleitoral), o cenário mais provável a 4 de Outubro.

A base de um compromisso político é, antes de mais, as duas partes terem vontade de dialogar e estarem dispostas a ceder em função dos resultados eleitorais. Se o partido A tem 36% dos mandatos e o B 15%, A terá maior capacidade de impor o seu programa, do que se A tiver 27% e  B 24%. Há duas coisas em jogo nestas eleições: as condições de governabilidade do país e a natureza das políticas públicas a implementar. Ambas dependem da proporção de deputados. Estando o quadro teórico clarificado, passemos a uma breve análise de propostas políticas.

O PCP diz-se disposto a governar, mas vejamos. Sobre as pensões, diz que se opõe às “crescentes tentativas de indexação das pensões a factores demográficos e económicos”, propõe um aumento anual real (leia-se acima da inflação) das mesmas. Diz ainda que quer afetar 0,25% do imposto (inexistente) sobre transações financeiras (ITF) ao Fundo de Estabilização da Segurança Social. Sobre a dívida, diz que quer reduzir o seu valor nominal em 50% e o seu serviço em 75%. Das 25 medidas urgentes que o PCP sugere, 22 têm impacto orçamental de agravamento do défice, ou pela diminuição da receita ou pelo aumento da despesa.

O PCP ignora a realidade (envelhecimento da população e crescimento moderado), faz propostas que ou não dependem só de Portugal (ITP, reestruturação da dívida), ou dependem e levariam ao descalabro das finanças públicas e à saída de Portugal do euro e a uma significativa inflação importada que levaria a uma diminuição real significativa das pensões que diz defender.  O voto no PCP é útil para quem queira sair do euro, mas inútil para quem defender o Estado social e em particular os mais vulneráveis. A política patriótica, que diz defender, levaria, pelo contrário, a um novo protetorado.

O Bloco de Esquerda enuncia claramente no programa ao que vem: “Só é possível inverter a política de austeridade rompendo com a lógica dos programas de ajustamento e do Pacto de Estabilidade. Isso mesmo fica demonstrado na Grécia...”.  E acrescenta: “Um governo de esquerda assume o confronto com as atuais instituições europeias e prepara todas as consequências possíveis.”

Está à vista o resultado, na Grécia, de se ter assumido o confronto unilateral com as instituições europeias. É precisamente pelo desaire da estratégia do Syriza (semelhante à do Bloco), e não por coincidência de calendário, que o Bloco desta vez não vai participar nestas eleições gregas. Sobre as pensões, o programa gasta mais espaço a criticar a direita e o PS do que a clarificar a sua proposta. A principal é a da afetação de uma taxa sobre o valor acrescentado das grandes empresas à segurança social. Em relação à dívida, pretende um abatimento de 60%, quer detida por credores públicos ou privados, e uma redução do juro para 1,5%. Dada a centralidade desta proposta, seria bom que o Bloco explicasse como a pretende efetivar e como pretende salvaguardar o Fundo de Estabilização da Segurança Social deste haircut da dívida (dado ser ele próprio detentor de dívida pública).

Muitas pessoas de esquerda (e algumas de direita) pugnam por uma renegociação da dívida, e por uma redução do peso excessivo dos juros. Mas uma coisa é considerar, como penso, que se deve pressionar a Europa, com ela e não contra ela, para uma solução multilateral para as dívidas, e outra é assumir isso como um dado na elaboração de um programa e fazer promessas com base em eventos que de nós não dependem.

A coligação PSD-CDS tem um conjunto de propostas para o futuro e tem um histórico de governação que agora os portugueses irão avaliar. Dou mais importância ao histórico do que às propostas, precisamente porque o passado recente da governação foi o contrário daquilo que foram as propostas pré-eleitorais. Importa relembrar alguns eventos. Antes do mais a tentativa, gorada pela convulsão social que gerou, de aumentar significativamente a TSU sobre os trabalhadores, para se poder reduzir a da entidade patronal. No âmbito do funcionalismo público, importa recordar a tentativa de aprovação de um decreto-lei, que lançava na mobilidade especial e eventualmente no despedimento trabalhadores que iniciaram a sua carreira há vinte ou trinta anos, com vínculo à função pública e que agora estavam com contrato por tempo indeterminado. Recordar ainda a redução de salários e pensões em 2012 de cerca de 14% só travada para 2013 pelo Constitucional.

Na Europa, a atitude do governo foi de aceitação acrítica de tratados e pactos, esquecendo que a Comissão e o Conselho são instituições políticas, que interpretam política e tecnicamente as regras como foi o caso da aplicação a Portugal de um Procedimento por Défice Excessivo (PDE), mas a não aplicação a França e Alemanha no ano seguinte do PDE, apesar de terem défices excessivos.

A política da coligação tem sido uma política de redução do défice, mas de aprofundamento das desigualdades sociais, que pretende aprofundar no futuro (ver Diário Económico, de 21 Agosto, e Expresso, de 5 de Setembro), de privatizações, de desestruturação, desqualificação e instabilidade na administração pública.

Não é indo contra as instituições europeias que se consegue ter uma política de defesa do Estado social, ao contrário do que a esquerda radical propõe. O PS tem criticado a arquitetura da zona euro e advogado a necessidade de reformá-la. Não haverá euro no futuro se não se progredir decididamente na união orçamental. Se há coisa que paradoxalmente estes novos movimentos migratórios para a Europa sugerem é que isto não é um problema do país europeu A ou B, é um problema da casa comum europeia e só pode ter resposta à escala europeia. Precisamos de mais Europa para resolver as questões humanitárias, de alterações climáticas, de defesa e de direitos humanos.

Na dimensão europeia, o PS está onde sempre esteve em Portugal, na vanguarda do projeto de integração europeia e com uma ambição de aprofundamento da cidadania. O que distingue o PS da coligação, o que distingue a esquerda, que efetivamente pode defender o Estado social de forma realista, da direita, é a atitude face ao Estado e face aos mercados. O PS apresenta um programa detalhado de ambição para o país, de crescimento económico, promoção do emprego, defesa do Estado social, de modernização e simplificação administrativa e de requalificação e motivação dos trabalhadores em funções públicas. Este programa foi cuidadosamente elaborado precisamente porque se pretende que seja realista, na Europa e no euro.

Que condições de governabilidade e que políticas públicas depois de 4 de Outubro? A resposta virá dos eleitores, claro. O país está ainda a braços com uma dívida, pública e privada, substancial, um crescimento ainda modesto, um desemprego, sobretudo jovem, ainda elevado e taxas de emigração inimagináveis há uma década atrás. Compreendo quem esteja desiludido e já nem considere ir votar, mas deverá fazê-lo, pois as opções são claras. De uma análise dos programas eleitorais resulta claro de onde podem surgir compromissos. Uma coisa é certa, quanto mais expressiva for a votação num partido, mais legitimidade terá para implementar o seu programa. E em termos de quem será o futuro primeiro-ministro, só há efetivamente duas opções. Professor do ISEG/ULisboa  e candidato independente nas listas do PS (Setúbal)  

O autor escreve segundo as regras do novo Acordo Ortográfico


 

 

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