Não queremos materialismo dialéctico. Queremos materialismo só

O tradutor Paulo Faria foi com o irmão a Moçambique, em busca dos lugares onde o pai fez a Guerra Colonial. Acabou em Titimane, onde o pai nunca esteve, a ajudar no projecto de electrificação da aldeia. E se, no fim de contas, a electricidade não chegar?

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Caminhamos atrás do chefe de bairro chamado Milagre Júlio para ir “marcar o ponto” em mais uma casa de Titimane, apertamos o passo porque as casas são muitas e anoitece cedo, quatro mil moradores, e eis senão quando, à nossa passagem, irrompe de trás de uma cerca de caniços um coro estridente de gritos femininos, as línguas a dançar entre os lábios para entrecortar os clamores e formar um som trémulo, um crescendo que só pode ser o prelúdio de uma catástrofe ou de um triunfo retumbante, não há meio-termo. Milagre, Miséria e Raiva são aqui nomes de gente, nesta aldeia sem electricidade, sem água canalizada, em pleno Niassa, nos confins de Moçambique. Nós somos brancos e viemos ajudar. Se a nossa ajuda for em vão, haverá mais miséria, mais raiva. Talvez precisemos de um pequeno milagre.

As pessoas posam diante das suas casas e fitam a objectiva da minha máquina fotográfica com olhares em que perpassam imensas coisas: reserva, alguma surpresa pelo inédito da situação, orgulho, uma certa esperança. Muitas mulheres correm para dentro de casa, embrulham-se na melhor capulana antes de tornarem a sair e de se perfilarem para o retrato. E se, no fim de contas, a electricidade não chegar? Com que direito entrei nestes terreiros, nestes quintais, com que direito despertei o bicho da esperança que dormia, muito quieto, escondido na sua toca, com que direito o atraí cá para fora e o fiz empoleirar-se no ombro destas pessoas, a segredar-lhes promessas aos ouvidos e a fazê-las sorrir vagamente? Talvez a electricidade, só por si, não baste.

A norte daqui, mais perto da fronteira com a Tanzânia, matar um elefante numa reserva de caça custa 50 mil dólares. Uma vez, vi morrer um javali, atropelado numa estrada, e parecia uma pessoa, a arquejar, ofegante, muito ferido, antes de acabarem com ele. Como será a agonia de um elefante?

Titimane tem também o seu elefante. É um tanque de guerra russo que expirou por aqui há muitos anos, durante a guerra civil, e a quem arrancaram o motor, deixando só a carcaça de aço, vazia por dentro. A aldeia cresceu, o terreno onde o paquiderme de guerra expirou estava bem situado, o tanque encontra-se agora no quintal de uma casa, com feixes de capim por cima, a secar ao sol, e, do outro lado, uma bicicleta encostada às lagartas.
— Nós não queremos materialismo dialéctico, nem sequer materialismo científico. Queremos materialismo só — palavras de Pedro Raiva, fazendo jus ao seu nome.

Somos dois irmãos, o nosso pai fez a Guerra Colonial por estas paragens em 1967 e 1968, viemos à procura de memórias, mas a realidade presente foi mais forte e impôs-se. Que importa a guerra dos nossos pais e dos nossos avós quando a vida é pobre e por vezes os partos se fazem à luz do petróleo e a enfermeira da maternidade diz “Elas sofrem muito, e “elas” são as grávidas e há várias crianças da aldeia com os círculos perfeitos da tinha desenhados no cabelo encarapinhado? É bom recordar a guerra quando ela acabou. Aqui, a guerra continua. Trepo para cima da torre do tanque russo para tirar fotografias. Lá do alto, avista-se bem a maternidade e o centro de saúde, que são mesmo ao lado. Um parto à luz do petróleo é uma pequena guerra, com as suas baixas e a sua frente de batalha. Milagre Júlio caminha em passo firme, não sorri.
— É perto?
— Sim, é perto.

Atravessamos a aldeia de lés a lés, as mulheres vêem-nos passar e soltam o seu clamor, as crianças seguem-nos em cortejo desordenado. Viro-me para as fotografar, fogem em tropel, sem olhar para trás. Ao abrigo das cercas feitas de madeira e de caniços, de dormentes metálicos do caminho-de-ferro, outras correm, mais afoitas. Vejo-lhes os vultos, trepam às árvores, gritam-nos:
Mucunha, como está? Como está?

Mucunha é “branco” em língua macua. Substantivo, não adjectivo. Os cães de Titimane não ladram. Vêem-nos passar com olhos parados, espalmam-se contra o chão, ficam em silêncio, abstêm-se do histerismo canino luso que faz da travessia pedestre de qualquer aldeola portuguesa um exercício de masoquismo auditivo. Todas as palavras são preciosas em Titimane, até os cães o sabem, a melhor defesa contra a fome é a reserva, o laconismo de não proclamar, de não exprimir, de guardar para si as palavras, que são também alimento, e mastigá-las devagar, saboreá-las em dias de maior penúria. Em Titimane não há crianças esqueléticas, a morrer de fome. Há crianças de ventre inchado, olhar ávido. A fome não vive na aldeia, mas ronda por perto.

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Miséria Cidália não quer mudar de nome. Concluiu o 12.º ano de escolaridade em Cuamba, arranjou este biscate como inquiridora na aldeia de Titimane durante uma semana, recebeu formação juntamente com duas dezenas de colegas para preencher os inquéritos à população, fala com os habitantes em macua, escreve nos espaços em branco em português. Anota no canto superior direito da folha de rosto a sigla do ponto GPS da casa. Na escola, as colegas diziam-lhe que mudasse de nome, que passasse a ser Cidália Miséria em vez de Miséria Cidália, para os outros dizerem “vem aí a Cidália” em vez de “vem aí a Miséria”. Mas Miséria gosta do nome que tem, não quer mudar. “Não mudo, Miséria é rica mesmo.”
— Quando? Quando a electricidade? — pergunta Felismina Raimundo, a enfermeira, à porta do centro de saúde.

Lá de cima
chegam até à minha angústia em procura
ecos, vozes de homens escondidos em murmúrios de súplica,
distâncias do que já foi um sonho.

Todas as palavras contam, o que eu disser ficará gravado nos ouvidos e nos espíritos como promessa indelével. Respondo que estes inquéritos e esta marcação do ponto GPS de cada edifício da aldeia constitui somente, pelo que me foi explicado, uma avaliação preliminar da viabilidade do projecto de electrificação da aldeia. Os olhos dela perdem um bocadinho o brilho, Felismina talvez se arrependa da pergunta que fez. Queria saber ao certo quando, ficou a saber que talvez, que provavelmente. Talvez seja preciso um pequeno milagre. Quando o gerador da maternidade falha, muitas súplicas ficam por atender.

O tanque de guerra russo tem o canhão apontado para norte, para o horizonte de onde desciam os guerrilheiros da Renamo. Veio de muito longe para morrer aqui, veio do frio russo para o braseiro de Moçambique e não se conseguiu adaptar. Os tanques de guerra são bichos sensíveis, dão-se mal com as mudanças bruscas de clima, de terreno, de dieta. Peço licença em macua à porta do quintal: “Odi! Odi!” Não está ninguém em casa, entro para o terreiro, fotografo o tanque. É um T-34 da Segunda Guerra Mundial, com capulanas estendidas na chapa, a secar. Talvez há muito, muito tempo, acabado de sair da fábrica, tenha arremetido contra as linhas nazis, juntamente com outros da sua estirpe.

A quatro horas daqui, para norte, os caçadores furtivos mataram um elefante há um ano, junto a uma picada recôndita, perto do quartel onde o nosso pai fez a guerra, mas não vale a pena fazer o desvio, os ossos já lá não estão, as hienas devoraram-nos. Este mastodonte russo é indestrutível, não há hienas que metam o dente neste aço, não há sol que o faça apodrecer, o cano pende como uma tromba fossilizada e aponta teimosamente para norte, à espera que a guerra recomece, como que a prometer, soturno, que as grávidas vão continuar a sofrer muito à luz do petróleo enquanto não o tirarem do meio das casas onde vivem as pessoas, enquanto não vier uma grua levantá-lo nos ares, numa nuvem de pó, mais ao lixo que lhe enche a pança, estripada de tudo o que tinha utilidade ou que podia servir de brinquedo, levantá-lo nos ares e levá-lo para a reciclagem e convertê-lo em electricidade para esta gente.

Um garoto aproxima-se do centro de saúde com uma galinha amarrada pelas patas, pendurada de cabeça para baixo. Quer vendê-la. A mãe viu forasteiros, alguns brancos, mandou-o mercadejar. Os inquiridores vindos de Cuamba, adolescentes de calças de ganga e ténis coloridos, pegam na galinha pelas patas, avaliam-lhe o peso, fazendo-a subir e descer baloiçadamente, perguntam o preço. Cento e cinquenta meticais [3 euros e 20 cêntimos]. Dizem que é muito. Em Cuamba, sim, seria o preço justo. Aqui, na aldeia, a trinta quilómetros, é caro. A galinha não protesta, não se debate, encurva o pescoço e nada mais. Trinta e oito meticais e meio valem um dólar. Comprar o direito a matar um elefante em Moçambique custa doze mil e oitocentas e trinta e três galinhas, vendidas a conto e cinquenta meticais. Ou nove mil e seiscentas e vinte e cinco capulanas da Tanzânia, vendidas no mercado de Titimane a duzentos meticais cada uma. O garoto afasta-se com a galinha suspensa pelas patas. Se a conseguir vender a alguém por este preço e guardar o dinheiro, ficam a faltar-lhe outras doze mil e oitocentas e trinta e duas galinhas para poder matar um elefante sem ser perseguido pelos guardas florestais bóeres que vigiam estas terras.

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Num só dia, em Fevereiro de 1968, o nosso pai vacinou contra a varíola trezentas e uma pessoas numa aldeia do Niassa. Sete homens, setenta mulheres e duzentas e vinte e quatro crianças. Eu e o meu irmão marcámos noventa e cinco pontos GPS em Titimane ao longo de três dias.
— É perto?
— É perto, sim.

Caminhamos durante meia hora em passo acelerado, entramos na casa de Esperado Wirissone, de Conhecido Alfredo, de Benvindo Eduardo, de Oneita Bento. As casas são feitas de tijolos de barro cru, secos ao sol, os telhados são de capim. A argamassa é a terra molhada. As pessoas perfilam-se em frente à sua casa, olham-nos nos olhos, querem acreditar mas talvez prefiram não acreditar com demasiada convicção. Outros vieram e partiram antes de nós, e quase nada deixaram aqui. Só ficou o tanque de guerra, e depois alguém saiu de casa dos pais para constituir família e construiu a sua casa nova e ficou com o T-34 no quintal.

Um homem abriu um “clube” em sua casa. Grossos barrotes de madeira alinhados no chão, com uma coxia no meio, formam uma plateia ao ar livre. Atrás, um caniço impede os intrusos de verem o filme. À noite, traz a televisão de dezassete polegadas para o alpendre e, com a energia de um gerador, projecta filmes em DVD. Os bilhetes custam dois meticais. Um elefante traz dentro de si quase um milhão de espectadores deste cinema.

Pedro Raiva aborda uma das técnicas portuguesas que coordenam este estudo preliminar de viabilidade. Serviu de tradutor na primeira reunião com os moradores da aldeia, deu a cara, tornou-se co-responsável, quem traduz um discurso fá-lo seu, as palavras saíram da boca dele em macua, mescladas com palavras portuguesas de que esta língua se apropriou, entre elas a mais importante de todas, a palavra “energia”. Agora, Pedro Raiva quer vincar a diferença, quer distanciar-se das palavras que traduziu. A diatribe em que está prestes a lançar-se será ouvida, será passada de boca em boca, será por ele usada como arma de defesa, no caso de as coisas não correrem como o previsto, no caso de a energia, afinal, não chegar às casas.
— Vocês são engenheiros, têm estudos, vêm de Portugal enganar o povo moçambicano.

Pedro chama-se Raiva e quer deitá-la cá para fora, sabe que ninguém o vai mandar calar. A miséria tem esta riqueza, a de nada ter a perder. Trezentas e uma pessoas vacinadas numa só tarde, noventa e cinco casas georreferenciadas em três dias. Muito pouco para aplacar a raiva, para mitigar a miséria, para fazer um milagre. A técnica, que não é engenheira, diz a Pedro que desde o início ficou claro que aquele projecto era como um namoro, que não era certo que houvesse casamento. Mas será legítimo vir de tão longe e namorar com um estranho sem a certeza absoluta de que o casamento se fará? A alternativa seria nem sequer aparecer, nem sequer fazer a corte a estas pessoas, deixá-las entregues à sua sorte, sem lhes despertar estas paixões, talvez efémeras, talvez irrealistas, como é próprio das verdadeiras paixões. Enquanto caminho ao sol, coberto de poeira, atrás de Milagre Júlio, ao encontro de uma casa que afinal não é perto, pelo menos de acordo com os nossos padrões europeus de locomoção automóvel, um homem sai ao meu encontro, pede para me falar. É dono de uma carpintaria, quer saber se a electricidade vai lá chegar ou se a energia é apenas para as casas e para as lojas, os “negócios”. Pergunto-lhe se já respondeu ao inquérito, se já “tiraram o ponto” na casa dele, ele responde que sim. Peço-lhe que vá ao mercado falar com os técnicos, não posso responder por eles, tudo o que eu disser fará lei, ficará gravado para memória futura.

Pedro Raiva não quer saber de namoros, é certamente casado e pai de filhos, aparenta quarenta e muitos ou cinquenta e tal, os namoros e os seus desgostos já ficaram para trás na sua vida.
— Olhe, nós já tivemos Samora Machel, já tivemos Joaquim Chissano, já tivemos Guebuza... Não queremos materialismo dialéctico, nem sequer materialismo científico, queremos materialismo só.

Os rostos das pessoas perfiladas diante das suas casas fitam a minha objectiva e em todos os olhos ecoam um bocadinho as palavras cortantes de Raiva. Parecem dizer-me: “Vais voltar para Portugal e vais contar a tua história, mas é só tua, não é nossa, a nossa é este imenso cansaço, esta imensa reserva, esta esperança que é preciso puxar do fundo do poço como água, à força de braços, dando à manivela, esta miséria, esta raiva, este milagre.”

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Milagre Júlio explica-nos que as crianças da aldeia dizem que eu e o meu irmão somos “os americanos”, por sermos tão brancos. Besuntamo-nos com protector solar à sombra de uma árvore, diante de uma família reunida em frente à sua casa. Crianças e adultos descrevem em voz baixa os nossos gestos, comentam, sem tirar os olhos de nós, como quem assiste a um filme. Pergunto a Milagre Júlio se as pessoas sabem o que estamos a fazer. Ele diz que aquele líquido deve ser para nos refrescar. Digo que não, que é para proteger das queimaduras do sol. Intrusos portadores da esperança, somos bem frágeis, afinal. O sol morde-nos a pele, ameaça reduzir-nos a pó. Como lidar com tantos pares de olhos cravados em nós? Ignorá-los, sorrir-lhes? Pouso o pé em cima de um tronco caído para me apoiar, um miúdo aproxima-se, apoia o pé no tronco, imita na perfeição a minha postura, muito sério. Com que direito sirvo impunemente de modelo seja a quem for? A nossa pele defende-se, escurece, mas nunca será como a deles.

Venha em mim um novo Adão. Quero
a minha túnica impoluta!

Passo junto a um dos poços da aldeia, uma rapariga pára de dar à bomba, fica a olhar para mim, não sorri, não foge, deixa-se fotografar. “Como está? Como está, mucunha?” Há sombras atrás de uma vedação de caniços, corridas, risadas. Os cães amarelos escondem-se pelos cantos, desviam os olhos também amarelos, engolem os ladridos, talvez saibam que não há por aqui muito que roubar, nem muito que guardar. Georreferenciamos cada casa com um telemóvel ligado ao satélite, fotografamos os edifícios dentro de cada quintal com esse mesmo telemóvel. Casa principal, casa secundária, latrina, celeiro e o mais que houver. Eu fotografo também com a minha máquina, que estica o pescoço de galinha preta e o torna a encolher, silenciosa. No nosso segundo dia de voluntariado, várias pessoas vêm ter connosco. Outras equipas foram “marcar o ponto” na casa delas, mas não levavam uma máquina fotográfica “a sério”, só um telemóvel. Faz diferença? Que não, que não faz.

Todos os nossos gestos são avaliados, a apatia de quem nos olha é só aparente, ao crepúsculo, depois de partirmos, os moradores comparam experiências, trocam histórias, descrevem os forasteiros, as suas indumentárias, os artefactos de que vinham munidos, analisam a sequência na coreografia dos nossos movimentos, pesam as diferenças. A miséria sabe que cada pormenor conta, a miséria sobrevive calculando cada grama, cada metical, cada gesto. A miséria doseia tudo, até a esperança, mas há qualquer coisa de irreprimível nos gritos estridentes e trémulos das mulheres que nos acolhem na curva de um carreiro poeirento, quando surgimos de trás de uma vedação. Nós, os americanos, parecidos com os dos filmes ao ar livre a dois meticais, um ecrã de dezassete polegadas para dezenas de espectadores, um milhão de pessoas dentro de um elefante. E se a electricidade não vier?

A aldeia onde o nosso pai ficou aquartelado em pleno mato quando chegou ao Niassa, em Novembro de 1967, já não existe. Os habitantes abandonaram-na por causa da guerra civil, os casebres de terra dissolveram-se sem deixar rasto, o capim seco que os cobria apodreceu, os edifícios do quartel estão em ruínas, abafados pelo ervaçal mais alto do que eu. A Guerra Colonial é uma coisa longínqua, as fotografias daquele tempo despertam entusiasmo, mas talvez por serem isso mesmo, fotografias, nas mãos de pessoas que não estão habituadas a ver assim de perto imagens de gente como elas. Ninguém se reconhece, ninguém reconhece os próprios pais, nem um qualquer familiar ou amigo. Ninguém reconhece o nosso pai. “Foi há muito tempo.”

A guerra que importa é a outra, a guerra civil, que obrigou as pessoas a abandonar as suas casas, que destruiu as culturas e os pomares, que deixou o tanque em Titimane. Temos o regresso a Nampula marcado para dali a quatro dias, oferecemo-nos para ajudar neste estudo preliminar de viabilidade. O nosso pai deixou marcas nos braços de centenas de pessoas, cicatrizes junto ao ombro que parecem queimaduras, sentimo-nos compelidos a deixar aqui uma pequena marca, quarenta e sete anos depois. Uma oferenda, talvez. O nosso suor, o nosso cansaço, as nossas pernas doridas ao fim do dia, as células da nossa pele mortas pelo sol, quilos de poeira vermelha nos pulmões para mitigar a rapacidade passada e presente dos nossos congéneres de pele branca. Mas quem nos incumbiu de tão ingénua missão? Quem é o dono deste crime?, escreveu Osvaldo Alcântara, do lado oposto deste continente, em Cabo Verde, sete anos antes de o meu pai desembarcar em Moçambique, sete anos antes de eu nascer.

Almoçamos na caixa da camioneta, juntamente com os inquiridores. Um saco de plástico preto por pessoa, lá dentro uma caixa de esferovite com arroz e frango. Comida suculenta, saborosa. Uma lata de sumo. Uma garrafa de água. Uma banana. Fecho a caixa, acabei.
— Não quer mais?
Digo que não.
— Ponha aqui.

Pergunto se é só o arroz que ele quer.
— Não, tudo.

Rapo o arroz e os ossos de frango com o garfo de plástico para dentro da caixa do inquiridor. Mora perto de Cuamba, numa casa melhor do que as de Titimane, porque é de tijolo cozido e tem telhado de chapa ondulada. E tem electricidade e televisão. Em volta da camioneta há crianças da aldeia que ali ficam o dia inteiro, a remirar-nos, a atropelarem-se para as fotografias. Pedem comida, pedem as garrafas de plástico.
— Garrafa, garrafa.
Palavras em surdina, teimosas, incansáveis.
— Garrafa, garrafa.

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Um dos miúdos recebeu um pacote de sumo vazio. Abre-o, espalma-o com cuidado, lambe-o por dentro metodicamente. Sempre que a camioneta ou a carrinha arrancam, os miúdos correm atrás, tentam agarrar-se à traseira, baloiçam ao longo de alguns metros, soltam-se quando o veículo acelera, envoltos em pó. No último dia, regresso a Cuamba na camioneta, por não haver lugar na carrinha. Assim que a camioneta ganha velocidade, os inquiridores, sentados nos taipais, num gesto espontâneo e unânime, com toda a naturalidade, agarram nos sacos pretos cheios com o lixo e com os restos do almoço, amontoados no meio da caixa, e atiram-nos pela borda fora, como a tripulação de um navio a alijar a carga supérflua durante uma tempestade. A estrada fica juncada de caixas de esferovite, latas vazias, garrafas de plástico. As crianças que vinham a correr atrás disputam o saque. É agora que precisamos de um pequeno milagre, tem de ser agora.

Miséria está de óculos escuros, não lhe vejo os olhos, mas sorri, a mexer no telemóvel, agitada pelos solavancos da estrada de terra batida cheia de buracos. Fez o ensino secundário sem ter um único livro em casa. Pediu livros emprestados a colegas, foi à biblioteca de Cuamba. Não deixam requisitar livros para casa. Quando o solavanco é mais violento, soltamos um grito em uníssono, agarramo-nos aos taipais, tentamos proteger a carne e os ossos da mordedura do metal. Poeira nos pulmões e nódoas negras no corpo como oferenda a Moçambique. Mas não chega.

Antes de subir para a caixa da camioneta, fui outra vez num instante fotografar o T-34. Era a luz das cinco e meia, a luz do crepúsculo invernal no Niassa, a hora mágica, que aqui é tão breve, e quis aproveitar. Desta vez, está gente em casa. Uma rapariga de camisola vermelha e duas irmãs mais novas. Peço-lhes para entrar no quintal, a mais velha diz que sim, está a moer cereal no pilão. Tiro fotografias, chamo-as para posarem diante do tanque de guerra, elas vêm a correr, não esperavam outra coisa, enfileiram-se, encostadas à chapa daquele monumento encalhado, de canhão apontado aos guerrilheiros que já não existem, a prolongar a guerra. Dentro de dois anos, se tudo correr segundo os planos, a central eléctrica de Titimane será inaugurada. E então, sim, talvez tenha acontecido aqui um pequeno milagre, a carcaça do tanque terá desaparecido, a maternidade terá energia eléctrica.

A rapariga da camisola vermelha dará à luz sem sofrer tanto como a mãe e como a avó. Chamará à filha Benvinda ou Felicidade, não lhe chamará Miséria. O perto continuará a ser longe pelos nossos padrões europeus. Pedro Raiva verá que não foi tudo mentira e as crianças de Titimane não ficarão paradas em volta da camioneta dos forasteiros e não quererão “materialismo só”, quererão mais, muito mais do que materialismo. Miséria Cidália, essa, continuará a chamar-se teimosamente assim, não terá pedido a ninguém que a trate por Cidália Miséria. E eu e o meu irmão teremos sido varridos da memória de toda esta gente, assim como o nosso pai o foi, mas não porque novas guerras e novas calamidades se terão abatido sobre esta terra, apenas porque, vestidas com túnicas impolutas, estas pessoas terão deixado de pagar pelos crimes de que não são donas e já não precisarão de suplicar. Que venha esse pequeno milagre. Estamos prontos.

Túnica

Caio na Noite. Lá de cima
chegam até à minha angústia em procura
ecos, vozes de homens escondidos em murmúrios de súplica,
distâncias do que já foi um sonho.
Outro sonho? Quem é capaz de me trazer o farrapo
da túnica que os dias deixaram!
Quem é o dono deste crime?
Venha em mim um novo Adão. Quero
a minha túnica impoluta!

Osvaldo Alcântara

 

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