A vida é bela

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É impossível não reparar na forma delicada como esta mulher tapa a sua filha. Finalmente, a criança adormeceu. Não sabemos se a cobre porque está frio na carruagem, se porque há luz a mais ou se a protege de algum barulho inesperado. O comboio, que segue de Budapeste para Viena, foi parado pela polícia austríaca na fronteira de Hegyeshalom, uma aldeia húngara a 75 quilómetros de Viena. Estão quase a chegar, mas a viagem já começou há algum tempo e não foi com certeza fácil. Saíram de casa há dias ou há semanas? Também não sabemos. Serão sírias, mãe e filha, é de lá que vem a maioria dos refugiados que hoje sobem pela Europa acima. Todos querem ir para o Norte, muitos para a Alemanha. Angela Merkel, que conhecemos como uma líder europeia dura mas lenta a decidir, trocou-nos as voltas ao revelar-se dura mas rápida, e dura no sentido oposto ao que muitos colegas de Bruxelas esperariam. Sabemos pouco sobre esta mãe e o seu bebé. O fotógrafo não lhes perguntou nada, não terá querido perturbar. Se vieram da Síria, já percorreram pelo menos três mil quilómetros, muitos a pé, talvez alguns de barco e autocarro.

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Sem papéis, vistos ou passaportes europeus, a polícia húngara deixou milhares de refugiados seguirem viagem. Por algumas horas apenas Vladimir Simicek/AFP

Fico a pensar no filme A Vida é Bela, de Roberto Benigni, que em 1999 ganhou o Óscar de melhor filme estrangeiro e o próprio Benigni de melhor actor, no qual rimos e choramos com a forma como o pai se esforça para que o filho acredite que está num jogo e não perceba que está afinal num campo de concentração. As dimensões são incomparáveis. O que os une é apenas o esforço de manter a aparência de normalidade naquilo que será tudo menos normal na vida de uma família. O bebé tem as mãos sujas. Se calhar é porque é bebé e os bebés sujam-se muito. Se calhar é por outras razões. Este bebé não vai provavelmente lembrar-se de nada, a amnésia infantil de que Freud nos falou. Até aos três anos temos essa sorte. É diferente para as crianças mais velhas — muitas a viajar sozinhas — que atravessam o mar Mediterrâneo à noite e vêem uma pessoa morrer no mar, um pai, um irmão.

O que levou esta mulher a sair de casa com uma mochila e o seu bebé, que mantém as pequenas pulseiras que todas as meninas usam no Médio Oriente, para se meter nesta viagem de milhares de quilómetros, sem documentos nem vistos? De comboio, Budapeste-Viena faz-se em três horas. Se calhar é apenas por sentir alívio que esta mãe tapa a sua filha. Nada aconteceu nesta paragem policial e a mulher, mais leve, aconchega a filha. Podem prosseguir viagem. A polícia mandou parar os dois comboios que transportavam 3605 refugiados, mas não foram retidos. Para trás ficaram milhares de pessoas à espera em Budapeste. Foi sorte pura. No dia seguinte, as autoridades húngaras já não deixaram ninguém sem visto entrar no comboio. Por vezes, a vida é bela.

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