Uma catedral para a matança

O antigo matadouro deixou de ser um gigante de portas fechadas, para se ir abrindo aos curiosos

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O século XX ainda era novo (estava-se apenas em 1910), quando os portuenses concluíram que o matadouro que servia a cidade de carnes já não chegava para as encomendas. Foi preciso projectar uma nova casa para a matança, escolher um local onde alojá-la e — não se saberia na altura — esperar uns 13 anos para que o novo espaço começasse a funcionar. Campanhã, aquela freguesia lá para o Oriente do Porto, onde estava a principal estação ferroviária da cidade, mas que ainda não estava muito apinhada de gente, foi o local escolhido. O engenheiro Avelino da Andrade projectou o espaço que é hoje considerado um dos mais “expectantes” da cidade.

Ignorado durante os anos em que se manteve activo, o edifício ganhou uma nova visibilidade quando perdeu a sua função e passou a ser conhecido como “o antigo Matadouro Industrial do Porto”. No final dos anos 1980, ainda morriam ali milhares de animais, mas o espaço acabaria por ser desactivado, deixando as suas amplas naves sem uso definido. A Câmara do Porto passou a usá-las como armazém e, quando a Sociedade Protectora dos Animais teve de ser desalojada durante a implementação do Plano de Pormenor das Antas, o município cedeu-lhe parte das instalações do antigo matadouro, a título de “instalações provisórias”.

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No final dos anos 1980, ainda morriam ali milhares de animais, mas o espaço acabaria por ser desactivado, deixando as suas amplas naves sem uso definido

De lá para cá, o edifício pouco mais fez do que definhar. Algumas paredes interiores cobriram-se de um musgo esverdeado, os vidros das janelas altas partiram-se, a tinta descascou, deixando manchas de humidade e velhice um pouco por todo o lado. Ainda assim, ninguém se atrevia a dizer que o edifício, classificado na Planta do Património como sendo de interesse municipal, devia permanecer naquele estado ou, pior ainda, ser demolido. Ele limitava-se a estar ali, à espera.

O antigo matadouro voltou à ribalta quando o executivo de Rui Rio decidiu colocá-lo à venda. O edifício foi incluído no conjunto de imóveis a alienar para pagar um acordo com antigos proprietários dos terrenos onde fora construído o Parque da Cidade e as campainhas de alerta começaram a soar. O que faria o comprador? Iria demolir o edifício? Transformá-lo irremediavelmente num processo de “reabilitação” que apenas mantivesse a fachada? Iria a antiga casa da morte dos animais da região sucumbir também à pressão turística e transformar-se num hotel? Os receios ganharam novo fôlego quando, em 2012, uma proposta do executivo de alteração ao Plano Director Municipal estabeleceu que o terreno do antigo matadouro deixaria de ser considerado como uma “área de equipamento existente” para passar a ser “área de urbanização especial”, possibilitando assim “aumentar/diversificar as possibilidades de intervenção”.

A sorte dos que temeram pelo fim do edifício é que Rui Rio nunca o conseguiu vender (nem este nem praticamente todos os que tinham sido indicados para venda, obrigando o autarca a pagar as indemnizações do Parque da Cidade com dinheiro do orçamento municipal) e que quem se candidatou às eleições autárquicas de 2013 começou a apontar a antigo Matadouro Industrial como um elemento importante no desenvolvimento de Campanhã.

Mas, como o mundo dá mesmo muitas voltas, estava o edifício posto em sossego, à espera de um qualquer projecto brilhante para o resgatar à degradação, quando Rui Moreira, o novo presidente, decide incluí-lo nos imóveis a alienar. Lá estava ele no orçamento para 2014 e voltou a estar no deste ano. O autarca garante que não desistiu de transformar o matadouro num foco central de modernidade para a freguesia, mas isso, diz, não implica que ele não possa ser vendido. Tudo depende das condições de venda, argumenta.

Entretanto, com pequenos passos, o antigo matadouro deixou de ser um gigante de portas fechadas, para se ir abrindo aos curiosos. Foi cenário de um filme, com o apoio do pelouro da Cultura. Esteve integrado na primeira edição do Open House que se realizou na cidade, em 2014 (altura em que foi descrito como uma “catedral” e se usou o tal termo “expectante” para o definir), e é desde Julho o palco de uma exposição sobre os bairros municipais da cidade, organizado pelo pelouro da Habitação. Até 20 de Setembro, o programa que acompanha a exposição inclui concertos, dança e debates. Já ninguém se atreve a adivinhar o futuro. O matadouro respira um pouco mais de vida, mas será que se livrou, de facto, da morte?

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