Nasceu a Plataforma de Apoio aos Refugiados e Sabina deu a cara por ela

Rui Marques, mentor da iniciativa que quer ser uma alternativa aos centros de acolhimento, prefere concentrar-se nos primeiros 1500 refugiados que deverão chegar a Portugal. “Comecemos pelo primeiro antes de falarmos do 1501, 1502 ou 1503.”

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Rui Marques, presidente do Instituto Padre António Viera, é um dos mentores do processo de constituição da nova plataforma Enric Vives-Rubio
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Sabina em 1993 com a sua família, já depois de o pai ter conseguido juntar-se a ela, à irmã e à mãe DR
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Sabina com o pai da família portuguesa que a recebeu (fotografia de 1994) DR

Foi o momento mais emotivo da sessão de apresentação da Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), nesta sexta-feira, em Lisboa. Tímida, que não está habituada a estas coisas de falar para uma plateia cheia, e para jornalistas e câmaras de televisão, Sabina Karamehmedovic, 35 anos, arquitecta, explicou que fez parte de um grupo de cem bósnios que em 1992 chegaram a Portugal. Fugiam da guerra. Para ela, a guerra começou aos 12 anos, no dia em que ouviu um estrondo a meio da noite, na sua casa na cidade de Derventa. Logo a seguir estava com a mãe e a irmã “numa carruagem cheia de desconhecidos” em fuga. E sentiu-se tão desconfortável. Poucos meses depois chegava a Portugal. Ontem garantia: “Nenhum refugiado quer deixar o seu país, nenhum quer deixar os seus hábitos, o café, a escola, a casa.”

Quando são acolhidos por um Estado que os recebe “não se querem aproveitar de nada”. Uma vez livres da guerra, querem regressar aos seus países “mal haja condições”, à sua escola, aos seus vizinhos, insistiu Sabina. Ou, se não for possível, seguir em frente e construir uma vida nova. Como ela fez e a sua família, em Portugal.

A PAR é uma iniciativa que está a ser liderada por Rui Marques, presidente do Instituto Padre António Viera. Em poucos dias, tem congregado várias instituições sociais que estão dispostas a receber refugiados, numa altura em que “está em curso a maior crise de refugiados/migrantes desde a II Guerra Mundial”, nas palavras do ex-Alto Comissário para a Imigração.

A lista, disse Rui Marques nesta sexta-feira, não pára de crescer, hora a hora, com instituições como a Cáritas Portuguesa, a Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade (CNIS), a Comunidade Islâmica e muitas, muitas outras.

A PAR vai seguir um modelo onde não há centros de refugiados. “É um modelo de integração comunitária”, sem prejuízo de se poder ponderar a existência de um centro de transição entre a chegada e a ida para as localidades, mas com carácter de curtíssima duração.

Cada instituição desta rede — uma câmara municipal, uma IPSS, por exemplo — ficará responsável “pelo acolhimento integral de uma família” de refugiados que antes já recebeu uma proposta de “contrato de acolhimento e integração” (no qual se “clarifica bem” o que a família vai encontrar quando chegar a Portugal, a duração do acolhimento, os direitos e deveres...)

A ideia, prossegue Rui Marques, é que as famílias fiquem em apartamentos, em casas autónomas, “em condições de vida autónoma, sempre que possível, que lhes permitam desenvolver o seu ritmo de vida normal”. Que aprendam português, que tenham acesso à educação e à saúde e a emprego de acordo com as suas capacidades.

“É um acolhimento disperso que envolve as comunidades locais, que promove a integração dos refugiados no contexto da comunidade onde estão e que evita a existência de centros de acolhimento que, muitas vezes, tendem a ser um gueto, com pouca interacção da comunidade”, explica ainda Rui Marques.

Sim, por estes dias fala-se muito de construção de centros de refugiados em Portugal, “há muitas generosidades”, e “provavelmente terão de existir alguns”, mas em declarações ao PÚBLICO momentos antes da apresentação oficial da PAR, Rui Marques concordava que tem de haver critérios e que cabe ao Estado liderar o processo. “Nós vamos apostar neste modelo, que é o nosso.”

Oficialmente, Portugal já se disponibilizou a receber 1500 refugiados. Mas poderão ser mais. “Há a ambição de ir além, mas eu gosto muito de começar pelo princípio. Comecemos pelo primeiro, antes de falarmos do 1501, 1502 ou 1503...”, diz Rui Marques.

Para os 1500, diz, há condições. “Com certeza que será sempre de uma forma imperfeita, mas tenho a certeza de que, um número como 1500 refugiados, Portugal terá todas as condições para receber com dignidade.”

Quanto ao número de famílias que a PAR (que é uma iniciativa da sociedade civil que complementa o Estado) poderá receber, diz que dependerá também do número de instituições que se ofereçam para ser anfitriãs. A expectativa é que os refugiados cheguem no fim de Outubro.

Lino Maia, da CNIS, fez questão de sublinhar durante a cerimónia, que as instituições sociais estão a postos. E criticou as vozes que “lá fora” falam de “praga” e de “invasão” para se referirem aos refugiados. Eugénio Fonseca, da Cáritas, também deixou um apelo contra “a ideia do medo” — “O medo de quem vai chegar, o medo da diferença... O pior que pode existir é o medo.”

Já Abdul Vakil, líder da Comunidade Islâmica de Lisboa, outra das entidades que faz parte do projecto, manifestou disponibilidade para receber cerca de 250 refugiados, seja qual for a proveniência. "Não têm de ser muçulmanos, até podem ser ateus", disse.

Sabina Karamehmedovic de novo: na sua intervenção na sessão desta sexta-feira mostrou algumas fotografias — a sua casa de telhas vermelhas e portadas de madeira, em Derventa, inteira, bonita; a sua casa arrasada.

Outra foto: com a família de Soure que a recebeu a ela, ainda criança, e à irmã e à mãe e que, “depois, teve também a generosidade” de ajudar a reunificação familiar — veio o pai também.

E ela a estudar na Universidade de Coimbra. E ela no seu casamento com um português — “Parecemos uma família feliz, não é?” Por acaso, Sabina faz nesta sexta-feira cinco anos de casada.

Não foi tudo fácil. Conta que no início os pais não sabiam português e, ao contrário dela, não tiveram professores na escola a fazer horas extraordinárias para ensinar a língua. A mãe, arquitecta, conseguiu integrar um atelier de arquitectura através do contacto de uma voluntária que a recebeu mal chegou (os primeiros dias foram passados numa Pousada da Juventude). Mas o pai teve de mudar de profissão — “era técnico químico, não arranjou nada nessa área”.

Contudo, Sabina acredita que se os refugiados — como ela foi —, os que agora aí vêm, receberem ajuda, “nada pode correr mal”.

Com a sua família não correu. A irmã fez-se enfermeira. Casou-se. Já foi mãe. A família cresceu. Já tem um “bósnio-portuguesinho e mais outro vem a caminho.”

Como ajudar
Quem quer ajudar ou saber mais sobre o projecto pode consultar o www.refugiados.pt (que acaba de ser criado e poderá ainda sofrer alterações). Qualquer instituição pode oferecer-se para organizar o acolhimento de uma família, assegurando a rede de apoios locais para garantir alojamento, alimentação e tudo o mais. E as pessoas individualmente podem envolver-se “na organização do acolhimento de uma família, através de uma instituição” a que estejam ligadas. Mais: serão necessários professores de português.

Em breve será ainda criada um linha de recolha de fundos para outro projecto, o PAR Linha da Frente, que irá apoiar os refugiados e deslocados da Síria, Líbano, Jordânia ou Turquia, através de organizações que estão no terreno (seja nos países de origem ou nos países vizinhos).

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