Oliver Sacks, autor de Despertares, adormeceu para sempre

Em Fevereiro, o célebre neurologista e escritor britânico anunciara nos media que estava a morrer. Eis um apanhado póstumo da vida multifacetada do médico que pôs a pessoa no centro da narrativa médica e explicou ao mundo as doenças mais paradoxais do cérebro humano.

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Oliver Sacks tinha uma popularidade rara para um cientista JAMES LEYNSE/CORBIS

Oliver Sacks, professor de neurologia da Universidade de Nova Iorque, autor de best-sellers cheios daquilo a que ele chamava de “contos clínicos” – e que deram origem a filmes de Hollywood como Despertares (com Robert de Niro e Robin Williams) e À primeira vista (com Val Kilmer e Mira Sorvino) –, morreu este domingo de cancro ocular na sua casa em Nova Iorque. Tinha 82 anos de idade.

No seu último livro, uma autobiografia intitulada On the Move (“em movimento”, “em mudança”) e publicada há uns meses, Sacks revelava partes pouco conhecidas da sua intensa história pessoal: foi motard e halterofilista, foi viciado em anfetaminas. Era um homossexual, que só agora, em tempos mais tolerantes, o assume publicamente – mas que praticava o celibato há 35 anos.

E não há muita margem para dúvidas: viveu cada momento dessa vida em cheio. Basta ler os inúmeros testemunhos e artigos de amigos e admiradores publicados na imprensa internacional nos últimos meses, na sequência da sua “morte anunciada”.

Daí que seja difícil abordar aqui todas as facetas e fases da vida deste médico, apaixonado por química e música, física e neurociências. Mas uma coisa é certa: o que o tornou mundialmente conhecido – e de facto, incontornável para milhões de leitores – foi esse cruzamento único que Sacks inventou entre a neurologia e a arte de contar, motivado pelo seu amor pelos seus doentes.

“Sacks contribuiu para humanizar uma série de estranhas perturbações neurológicas – e, em certa medida, tornou naturais bizarros sintomas tais com os tiques e os tremores dos doentes”, disse ao PÚBLICO por email o conhecido neurocientista português António Damásio. “Fez os leitores perceber que, por detrás da estranheza dessas manifestações, há também uma pessoa que pensa e que sente. Essa foi um feito notável, conseguido por Sacks ao longo de décadas de escrita incessante.”

Sacks escrevia com uma humanidade e uma empatia sem iguais (já para não falar da sua mestria literária e científica) sobre as patologias neurológicas mais bizarras. E tinha sempre coisas profundas e emocionantes a dizer sobre a luta dos doentes com as suas trágicas doenças, descrevendo como ninguém os mistérios do mais misterioso dos órgãos que é o cérebro humano.

A prova disso, a admiração que nutria por ele o poeta anglo-americano (e seu amigo) W.H. Auden (1907–1973). Ou a que tem hoje a escritora britânica Hilary Mantel (autora, entre outros, do aclamado romance Wolf Hall), que declarava, num curto texto em 2013 no jornal The Guardian, que Sacks era o seu herói e que ele tinha “elevado a história clínica ao patamar da literatura”, acrescentando que “[Sacks] nunca faz o leitor sentir-se um voyeur; a sua abordagem é subtil, e o que emerge de todo o seu trabalho é o seu respeito pelos seus sujeitos. Parece amar os seres humanos (…). Não ama a humanidade em abstracto, mas admira e aprende com cada indivíduo, não importa o quão devastado [pela doença]”.

De Londres para Nova Iorque
Nascido em Londres em 1933, numa família de médicos e cientistas, Sacks estudou medicina na Universidade de Oxford e a seguir emigrou para os EUA, onde fez o internato em São Francisco e Los Angeles, lê-se na curta biografia no seu site oficial. E a partir de 1965, passou a residir e a exercer a neurologia em Nova Iorque, dedicando-se a tratar pessoas com doenças neurológicas literalmente fora deste mundo (não é por acaso que intitularia, mais tarde, um dos seus grandes livros de contos clínicos Um Antropólogo em Marte).

Foi em 1973 que publicou Despertares, o seu segundo livro, que mais tarde daria lugar ao filme com o mesmo nome, com Robin Williams no papel de Sacks. Mas a sua “saga” com o grupo de doentes descritos no livro, “congelados no tempo” desde os anos 1920 devido a uma misteriosa epidemia de “encefalite letárgica” e esquecidos num hospício do Bronx, começara pouco depois da sua chegada à Big Apple. Sacks fê-los literalmente acordar, quatro décadas depois, quando teve a ideia de lhes administrar um então novo medicamento contra a doença de Parkinson, a L-Dopa.

Todavia, o que celebrizou Sacks – na medicina e na escrita – foi a sua primeira recolha de “contos clínicos” propriamente ditos, O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu, publicada em 1985. A história que dá título a esta antologia não podia deixar ninguém indiferente: era a de um homem que sofria de “prosopagnosia” (como aliás o próprio Sacks), uma doença rara que torna a pessoa incapaz de distinguir os rostos humanos entre si apesar de ter uma visão e um processamento pelo cérebro da informação visual totalmente normais. O encenador de teatro britânico Peter Brook criaria nos anos 1990, em Paris, o espectáculo L’Homme qui (O homem que), com base nesses contos de Sacks.

Mas essa era apenas a primeira leva de novelas verídicas que compunham o livro. Histórias fascinantes e ao mesmo tempo angustiantes, uma vez que mostram a fragilidade do mundo perceptual construído pelo nosso cérebro – do nosso único elo com o mundo que nos rodeia. Mais de duas dezenas de capítulos, com títulos como O homem que caiu da cama, O dedo fantasma, A doença de Cupido ou Um cão sob a pele perfaziam uma viagem a um mundo quase extraterrestre, misterioso e desconhecido da maior parte das pessoas: o das doenças neurológicas, do cérebro fragmentado.

Um deles, A mulher desencarnada, particularmente memorável (não há outra forma de o qualificar), relatava o caso de uma jovem mulher que tinha perdido a “propriocepção” (o sentido que permite, mesmo com os olhos fechados, saber qual é posição e a postura do nosso corpo no espaço). Sacks contava como aquela vida humana, de repente interrompida de forma tão trágica como invulgar, fora a seguir reconstituída, reunificada pela própria doente, numa batalha heróica contra o seu mal.

Outros contos ainda revelavam, por exemplo, o mundo de dois gémeos autistas com extraordinárias capacidades matemáticas, ou um caso de “doença dos tiques” (a síndrome de Tourette) que faz as suas vítimas praguejar sem controlo – e uma doença de que na altura ninguém falava.

Ao longo dos anos, Sacks escreveu uma série de artigos para a revista The New York Review of Books (NYRB). Um deles, especialmente comovente, integraria a seguir o seu livro Um Antropólogo em Marte: falava em grande pormenor do caso de um pintor que, na sequência de um acidente de viação, se tornara incapaz de ver cores – e mais: incapaz sequer de imaginar, de saber, o que é a cor. Por causa disso, o pintor passara a viver num mundo de pesadelo onde o Sol parecia um grande disco preto e as pessoas tinham a pele da cor das ratazanas.

Tal é a força da descrição que Sacks faz deste caso único que ficamos com a convicção de que, se a nossa mente se encontrasse numa encruzilhada tão bizarra como essa, quereríamos ser tratados por ele e só por ele. “Todos os médicos aspiram a ser um pouco como Sacks (…) pela sua óbvia humanidade e pela sua escrita sublime, que vai ao âmago do que significa ser humano e frágil”, salientava em finais de Julho, no Guardian, a oncologista Ranjana Srivastava.

Pode-se dizer que Sacks reinventou assim a relação médico-doente. E foi ainda mais longe. Na sequência de um grave acidente que teve durante um passeio solitário, numa região montanhosa da Noruega – em que foi perseguido por um touro que quase lhe arrancou uma perna –, Sacks foi hospitalizado e teve uma recuperação lenta e dolorosa. E no seu livro Perna para que te quero (A Leg to Stand On) relata com profunda perspicácia essa experiência, em que teve a estranha sensação de que a sua perna já não lhe pertencia. De repente, o neurologista passara para o outro lado da barreira, tornando-se ele próprio num caso neurológico a ser “dissecado” pelos seus colegas. 

Uma morte anunciada
A doença mais grave de Oliver Sacks, essa, começou há quase uma década, quando lhe foi diagnosticado um melanoma num olho – um tumor maligno raro. Perdeu o olho devido à cirurgia necessária para retirar o cancro – e durante anos, pensou-se que estava curado, uma vez que, no seu caso, o cancro parecia pouco susceptível de criar metástases noutros órgãos. Mas não foi assim.

Em Fevereiro, num pungente artigo publicado no New York Times (NYT), Sacks revelava que estava a morrer. “Há um mês, sentia-me de boa saúde, de saúde mesmo robusta”, escrevia. (…) Mas a minha sorte acabou: soube há poucas semanas que tenho múltiplas metástases no fígado.”

A seguir, com a sua habitual sensibilidade, acrescentava:  “[Sinto-me] intensamente vivo [e espero que, no tempo que meresta], aprofundar as minhas amizades, dizer adeus às pessoas que amo, escrever mais, viajar se tiver forças para isso, atingir maiores níveis de compreensão e de perspicácia.”

E mais à frente, como que se desculpava: “Ainda me importo profundamente com o Médio Oriente, com o aquecimento global, com as desigualdades crescentes, mas essas coisas já não me dizem respeito; pertencem ao futuro.” Confessava ainda:  “[Não posso] fingir que não tenho medo”, mas acrescentava logo: “O meu sentimento predominante é de gratidão.” E concluía: “Acima de tudo, fui um ser que sente, um animal que pensa, neste maravilhoso planeta, e isso foi só por si um enorme privilégio e uma enorme aventura.”

Desde então, Sacks foi submetido a um tratamento dito de embolização, destinado a limpar o seu fígado das metástases (quase metade daquele órgão fora invadido pelo cancro). Descreveu-o num outro artigo, publicado em Abril desta vez na NYRB – o segundo de uma espécie de “crónica de uma morte anunciada” que tem alimentado nos últimos tempos.

O tratamento, escrevia Sacks, consistira em injectar na artéria hepática uma quantidade de “minúsculas bolinhas, para serem transportadas até às mais pequenas arteríolas, bloqueando-as e cortando o aprovisionamento em sangue e oxigénio necessário às metástases – ou seja, matando-as à fome e asfixiando-as”.

Os dias seguintes da sua vida foram marcados por uma série de efeitos secundários de pesadelo – o que não impediu Sacks de continuar a escrever incansavelmente. Mas “ao décimo dia deu-se uma viragem (…); à tarde, senti-me outra pessoa. Foi uma sensação deliciosa e totalmente inesperada”. Sacks esperava, graças ao tratamento, “sentir-se mesmo bem durante três ou quatro meses”.

Mas a deterioração da sua saúde foi infelizmente mais rápida. Num terceiro artigo em finais de Julho, novamente no NYT anunciava que “essa sensação de bem-estar e de energia começou a declinar de Maio para Junho”. A 14 de Agosto, também no NYT, publicava o seu último artigo.

Apesar de continuar activo (nadava todos os dias), Sacks confessava pela primeira vez, no artigo de finais de Julho, que já não conseguia negar o facto de que estava mesmo doente. E a 7 de Julho, uma TAC revelara que o cancro tinha não só regressado ao fígado, como estava espalhado para outros órgãos. À espera de poder ter “mais alguns meses bons”, Sacks começara um outro tratamento – uma imunoterapia, também ela arriscada.

No mesmo artigo de Julho, o médico e escritor regressava à sua paixão de sempre pela química – e pelos elementos químicos, que desde a sua pequena infância foram, dizia, os seus “companheiros” em situações de perda de entes queridos.

E explicava ainda que tinha uma colecção de minerais, uma tabela periódica muito pessoal, na qual os números dos elementos representavam os anos que passam. “O bismuto é o elemento 83. Acho que não vou chegar ao meu 83º aniversário, mas (…) há qualquer coisa de encorajador em ter o ‘83’ por perto.”

E concluía: “Na outra ponta da minha tabela – a minha tabela periódica – tenho um belíssimo pedaço de berílio trabalhado (o elemento 4) para me lembrar da minha infância e de quanto tempo já passou desde que a minha vida – que em breve irá acabar – começou.”

Notícia actualizada às 15h58 de 30 de Agosto de 2015

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