Refugiados: a Alemanha faz da crise uma oportunidade

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Qual é o primeiro problema da Europa? Segundo o último Eurobarómetro é a imigração. À frente da economia e do desemprego, o que é um facto sem precedentes. É a opinião de 38% dos inquiridos, contra 32% no Outono passado. A sondagem não permite distinguir entre imigração e crise migratória. Mas a interpretação não deixa dúvidas.

Uma surpresa: não é na Itália ou na Grécia, países mais directamente atingidos pela vaga migratória, que a sensibilidade se tornou mais aguda, mas na Alemanha onde 55% dos inquiridos referem o tema como a mais importante questão da União Europeia. É também a opinião de Angela Merkel: "No futuro próximo, o fenómeno [das migrações] está destinado a ocupar-nos muito mais do que a Grécia ou a estabilidade do euro."

Calcula-se que neste momento 3,2% da população mundial (232 milhões de pessoas) está em situação de "mobilidade internacional", três vezes mais do que há 40 anos, esclarece Philippe Hugon do think tank francês IRIS. "O essencial da migração internacional permanece largamente Sul/Sul; as fronteiras do Norte estão cada vez mais fechadas enquanto são cada vez mais numerosos os candidatos a entrar na Europa." Os conflitos da Síria, do Iraque, da Eritreia ou da Somália fizeram explodir o número de migrantes clandestinos.

A clandestinidade relançou a "indústria" do tráfico humano, comandado por máfias, um florescente negócio calculado em 40.000 milhões de dólares à escala mundial. A política duma "Europa fortaleza", com "muros, fossos e barragens", fomenta o tráfico. Aos afogados da rota do Mediterrâneo ocidental, somam-se agora os 71 refugiados da "rota dos Balcãs" que morreram asfixiados num camião frigorífico.

Amplificadores do medo
"A Europa é um íman irresistível", resume a jornalista italiana Adriana Cerretelli. "É bom que nos rendamos à evidência para podermos enfrentar em conjunto a emergência, sabendo que, se gerida de forma coordenada e com uma visão a prazo, ela pode tornar-se numa enorme oportunidade para um continente a envelhecer e em crise de crescimento. Mas na condição de que seja governada e não sofrida de forma passiva e descoordenada como hoje acontece." Não é a UE que falha. São os governos nacionais que temem os eleitores. Nove países da UE, da Espanha à Polónia, recusaram aderir ao sistema obrigatório de acolhimento de refugiados.

Há propostas de "políticas inteligentes" de imigração que são metidas na gaveta. O que neste caso está em jogo não é a limitação das soberanias nacionais mas uma resposta comum a uma urgência comum. Se os Estados europeus se fecham sobre as suas fronteiras e cada um joga por si perderão poderio e riqueza. Para lá do "naufrágio dos valores europeus" — a derradeira perda que se podem dar ao luxo de consentir. "A política de fortaleza e avestruz, que se explica pelos medos e pelos fantasmas, e prefere o simulacro às políticas responsáveis, é não só indiferente aos dramas humanos como suicidária a prazo", conclui Hugon.

O medo da imigração — a "invasão" — é um problema real. A Europa precisa de imigrantes e tem o dever de acolher os refugiados. Mas uma "política generosa" não vai alimentar a xenofobia? É em parte verdade. Mas este raciocínio encerra também uma mistificação. Olhemos a Itália. De Janeiro até hoje, o temor da imigração, sobretudo em termos de segurança, subiu de 33 para 42%. Ecreve o politólogo Ilvo Diamanti a propósito deste sentimento de insegurança: "O problema é que se sentem indefesos. Sem uma autoridade que os proteja. Sem ideologias que ofereçam certezas. E sobretudo sem fronteiras. Porque sem fronteiras perdemos a identidade. E a identidade serve para nos distinguirmos dos outros." Por isso os imigrantes constituem um argumento sensível no plano político, explorado pelos populistas de direita. Não é uma "síndrome italiana": olhem-se a França de Marine Le Pen, a Grã-Bretanha do UKIP ou a Suécia do partido anti-imigração Os Democratas.

A moeda tem um reverso. As políticas de acolhimento do governo encontram uma oposição frontal de partidos como a Liga Norte, de Matteo Salvini. Os italianos não querem que instalem imigrantes na sua vizinhança. A surpresa é que a maioria deles criticam as regiões e municípios que recusam o acolhimento, tal como os países que fecham as fronteiras e não aceitam a sua parte de imigrantes. Diamanti chama a atenção para outro fenómeno, os "políticos pirómanos". O auge do "medo do imigrante", 51%, registou-se em 2007: não havia nenhuma vaga migratória mas campanhas eleitorais em que a Liga Norte impôs o tema e foi seguida por Berlusconi e outros, perante o embaraço duma esquerda quase muda. Estes partidos, em especial a Liga Norte, são os "amplificadores do medo".

A oportunidade alemã
Escreve Joschka Fischer, antigo vice-chanceler alemão: "Os responsáveis políticos terão de explicar ao seu povo que não pode ter prosperidade económica e um alto nível de segurança social, com uma população em que os reformados são um encargo cada vez maior para os activos. A força laboral da Europa deve crescer. É uma das razões pelas quais os europeus deveriam deixar de tratar os imigrantes como uma ameaça e começar a vê-los como uma oportunidade."

A Alemanha prevê que até ao fim do ano terá recebido 800 mil pedidos de asilo. E prepara-se para os aceitar, com o aplauso do mundo empresarial. As despesas federais e dos estados federados aumentarão. É um investimento a prazo. Há actos xenófobos e racistas, sobretudo no Leste alemão. Merkel condenou as violências "abjectas" e disse: "A Europa está numa situação que não é digna da Europa."

A chanceler, como é seu hábito, demorou a reagir às vagas migratórias no Sul europeu. Agora antecipa-se, num acto de lucidez estratégica que os alemães partilham. "As sondagens mostram que 60% da população pensa que a Alemanha é capaz de enfrentar o desafio da integração de centenas de milhares de refugiados", explica ao Libération Hajo Funke, um especialista na extrema-direita e na imigração. "É um facto totalmente inédito na História alemã."

A primeira razão é que, desde os anos 1990, "os grandes partidos democráticos, com raras excepções, foram deixando de utilizar os temas da imigração, da nacionalidade ou do direito de asilo com fins eleitorais e politiqueiros." Depois, foi sob a tutela de Merkel que a direita alemã aceitou a imigração. "Sem o dizer expressamente, ela inscreveu a sua acção na linha dos governos verde-vermelhos [Verdes e sociais democratas]." Merkel percebeu que a colagem de Sarkozy aos temas anti-imigração da Frente Nacional lhe valeu votos nas eleições de 2007 mas acabou por aproveitar depois, e muito, a Marine Le Pen. Assume também a posição inversa de David Cameron que se deixou condicionar pelo discurso anti-imigrantes e anti-Europa de Nigel Farage. Por isso pode transformar a crise migratória numa oportunidade.

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