"O râguebi português tem de voltar ao amadorismo”

Em Portugal há sete anos, Damian Steele considera que o râguebi nacional não teve a evolução esperada devido às más decisões federativas tomadas depois de 2007

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Luís Cabelo

Treinador do CDUL, onde se sagrou nas duas últimas épocas campeão e vice-campeão nacional, o australiano Damian Steele chegou a Portugal em 2007, por influência de Rohan Hoffmann, para jogar no Belenenses. Ao fim de sete anos de ligação ao râguebi nacional, o técnico lamenta que exista actualmente “um campeonato nacional menos competitivo”, “selecções de sevens e XV inconsistentes” e “falta de comunicação, transparência e liderança” na federação, considerando que é necessário “voltar ao amadorismo” para inverter a tendência de queda actual.

 

Cresceu em Brisbane, mas passou pelo Nudgee College e pelo Brother’s de Queensland. Como foi a sua juventude e percurso na Austrália?

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Cresci numa pequena vila de Queensland, chamada Biloela, que era óptima para as crianças, visto que havia uma grande oferta de desportos disponíveis e havia sempre uma série de actividades a acontecer. Aos 15 anos fui para o Nudgee College, que é um colégio interno em Brisbane e no período de dois anos toda a minha família acabou por ir para Brisbane, onde ainda hoje moram. Fiz o curso de treinador e joguei pelo Brothers Rugby Club, enquanto treinava o Nudgee, até ter vindo para Portugal, em 2008.

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Com que idade começou a jogar e o que o atraiu no râguebi?

Na verdade, comecei por jogar Rugby League aos seis anos. Fui ver um amigo jogar e o pai dele empurrou-me para dentro de campo e aí fui eu! Joguei sempre Rugby League ao mesmo tempo que pratiquei críquete, ténis, natação, basquetebol e touch. Só comecei a jogar Rugby Union quando tinha 15 anos e fui para o colégio interno. Era uma espécie de religião lá e como não havia Rugby League, a decisão foi natural. Foi um local extraordinário para aprender o jogo, visto que as condições a nível dos treinadores, da logística e a da qualidade dos jogadores era muito elevada.

 

Em Portugal começou por jogar no Belenenses. O que o trouxe até cá?

Queria jogar na Europa e mantive contacto com o Rohan Hoffmann depois de ele ter estado em Brisbane, em 2004 e 2005. Gostei da ideia de jogar em Portugal e fui feliz, pois o Bryce Bevin [treinador do Belenenses na altura] andava à procura de um abertura e gostou do meu currículo. Previ ficar dois anos, mas nunca se pode prever o que vai acontecer. Já cá estou há sete…

 

Treinou também os sub-14 e sub-18 do Saint Julian's. Foi um projecto importante no seu percurso?

Foi um projecto muito agradável e importante na minha vida durante seis anos. Cheguei ao clube ainda recém-formado e com muitas pessoas dedicadas. Com capacidade elevada de trabalho, conseguimos crescer e fazer do projecto um sucesso nas camadas jovens. Trabalhamos muito no sentido de instalar os princípios do râguebi e o espírito nos jovens jogadores. Com uma angariação de fundos constante, além de uma boa organização e patrocínios, conseguimos providenciar a cada equipa a experiência de fazerem uma digressão todos os anos. Entretanto, também me tornei professor na escola e foi uma parte integrante do meu desenvolvimento como treinador. Foi fantástico lidar com tantos jogadores, treinadores, pais e adeptos tão entusiastas e apaixonados pelo râguebi.

 

Como tem visto o desenvolvimento do râguebi português? Vê melhorias desde que chegou a Portugal?

Infelizmente, não. Não conheço actualmente o número de jogadores que existe, mas parece-me que se tem assistido a um aumento de clubes de juniores e de seniores, e há de certeza muitos jovens talentos a jogar neste momento. No entanto, a realidade é que as coisas têm piorado, com um campeonato nacional menos competitivo e com selecções de sevens e XV inconsistentes. Não estava cá no Campeonato do Mundo, em 2007, e é difícil comentar sobre esse ano especificamente, mas quando cheguei a Portugal, em 2008, sentia-se um burburinho, uma agitação em relação ao desporto e havia qualidade no campeonato e nas equipas nacionais. No entanto, parece-me que perdemos um pouco a identidade como nação de râguebi, tendo ficado encadeados pelas luzes do mediatismo da altura e por questões de finanças que se seguiram. Os anos pós-Mundial seriam decisivos para o desenvolvimento do râguebi, mas houve, na minha opinião, uma má atribuição de fundos e um deficiente plano de desenvolvimento, com o grosso da atenção a ir para o ‘top level’. Claro que a selecção nacional mereceu colher os frutos do seu esforço, mas isso criou um precedente perigoso, com jogadores a chegarem à equipa à espera de serem pagos e bastante bem pagos, mesmo não estando a fazer trabalho e exibições meritórias dessa atribuição.

 

A aposta na semiprofissionalização foi um erro?

A passagem de amador para semiprofissional ou profissional deve ser lenta, planeada, calculada e implementada de maneira cuidada ao longo do tempo. Sustentabilidade e continuidade são cruciais em qualquer plano de desenvolvimento e parece-me que isto não foi feito com a devida atenção. Mais uma vez, na minha opinião, os fundos e recursos deveriam ter ido para o desenvolvimento de jovens jogadores e treinadores, de modo a que houvesse mais qualidade por onde escolher, o que inevitavelmente levaria ao sucesso no topo da pirâmide. Não vale muito a pena estar a pensar constantemente nos erros passados, mas penso que seja importante aprendermos com eles. Algumas decisões difíceis precisam de ser tomadas e o râguebi português tem de voltar ao amadorismo. Eu não digo que se retire todo o dinheiro da equação, mas os salários de jogadores e treinadores deveriam reflectir directamente a nossa realidade como nação de râguebi. Deveríamos colocar atenção nas raízes da árvore, ou seja, no desenvolvimento de jovens jogadores, desenvolvimento de treinadores, de árbitros, de estabelecer competições locais competitivas de modo a que o futuro possa ser próspero desde os sub-8 até aos seniores.

 

Mencionou numa entrevista que preferia uma competição de seis a oito equipas de modo a garantir maior competitividade. E o que fazer com as outras equipas que só jogam pelo amor à camisola?

A única motivação para ter menos equipas no campeonato seria somente torná-lo mais competitivo. Não é desrespeitar as outras equipas, é simplesmente uma abordagem para tentar fortalecer a competição com jogos mais equilibrados. Necessariamente as equipas que saíssem do campeonato principal iriam competir, mas a um nível mais adequado às suas bases. Qual é o segredo do sucesso dos All Blacks? As cinco equipas que alimentam a selecção têm muito sucesso no Super Rugby e são claramente a força dominante na competição. Abaixo das equipas do Super Rugby, está um sistema na ITM cup e abaixo está outro de clubes regionais que alimenta as equipas da ITM. O produto natural disto passa por jogadores melhores e mais completos que conseguem atingir e viver o seu potencial, produzindo em última instância jogadores para a selecção mais poderosa do Mundo. A minha ambição para Portugal passa por aí. Gostaria que os jogadores entrassem em campo sabendo que precisam de desempenhar bem individualmente e colectivamente, de modo a obter o resultado desejado. Não haverá jogos muito fáceis ou muito difíceis, apenas jogos equilibrados e competitivos. Há diferentes modelos que podem ser adoptados, mas como nenhum avançou ainda, esta sugestão de seis ou oito equipas é isso mesmo, uma sugestão entre muitas possibilidades. É tudo uma questão de dar qualidade regular aos jogos. Se tivéssemos 10 equipas que conseguissem durante uma época garantir jogos assim, seria o ideal, mas a realidade é que não as temos.

 

Qual o papel da federação em tudo isso? Pensa que tem havido um trabalho positivo?

Os factos falam por si, não é verdade? Há 10 anos, Portugal era 16.º do mundo; quando o actual presidente tomou posse, em 2010, éramos 19.º; agora somos 29.º. Não nos qualificamos para os dois Mundiais anteriores e perdemos recentemente a possibilidade de participarmos nos Jogos Olímpicos, um ano antes do previsto. Estamos numa posição precária no Torneio das Seis Nações B e estamos prestes ver uma quarta equipa de treinadores trabalhar em quatro anos na selecção de XV… Alcançámos e temos mantido um certo estatuto no Circuito Mundial de sevens, mas por aquilo que vou sabendo existe grande incerteza para a próxima época. Estes são apenas os problemas no topo da pirâmide. As questões relativas ao resto são imensas e igualmente preocupantes.

 

O que pode ser feito para inverter a tendência de queda actual?

Há muitos factores para a queda de uma organização, mas em última instância é a pessoa que está no topo a responsável e que tem de assumir as responsabilidades. Não acredito que os rumores, insinuações e negatividades que andam no ar sejam úteis à causa, mas é difícil ignorá-los quando estes são alimentados por falta de comunicação, transparência e liderança. Após sete anos em Portugal, na minha opinião, os problemas mais prementes que existem são vários. Posso dar alguns exemplos. Há falta de entendimento de quais são os papéis e responsabilidades das pessoas; falta visão no planeamento sustentado em todos os níveis do râguebi; existe uma implementação limitada dos planos já desenvolvidos; há uma fraca análise de processos de modo a atingir resultados e eficiência da força de trabalho disponível; existe ausência de comunicação e de atitude de colaboração; falta confiança e transparência na força de trabalho. Penso que seja crucial que um presidente que esteja na federação perceba estas questões. Os problemas precisam de solução imediata, mas as soluções necessitam de ser relevantes no nosso próprio quintal. Não podemos continuar a pensar em cada época individualmente como clubes ou equipas seniores porque há que perceber que há um interesse superior que precisa de ser salvaguardado, que é a nossa existência como nação de râguebi.

 

 

Quais têm sido as suas maiores dores de cabeça ao treinar o CDUL?

Já há duas agradáveis e desafiantes épocas que treino o CDUL. Um dos desafios é precisamente o facto de estarmos a falar de uma equipa habituada a ganhar e isso exige que eu, conjuntamente com o staff e a direcção, tenhamos de trabalhar constantemente no sentido de fazer com que esses jogadores atinjam o seu potencial, ajudando-os a crescer e desenvolver. Sem desrespeitar as outras equipas, têm havido jogos em que jogámos terrivelmente mal, mas mesmo assim conseguimos ganhar e algumas vezes com pontos de bónus. E isto não faz absolutamente nada pelo desenvolvimento dos jogadores, e mostra que a mediocridade é aceitável e, ainda assim, pode proporcionar resultados. Outro problema é ter de lidar com as expectativas dos jogadores e assegurar um equilíbrio entre os objectivos de curto prazo e a sustentabilidade dos clubes a médio e longo prazo. Temos a sorte de ter uma equipa forte com jogadores com experiência internacional misturados com jovens talentos. Todos querem jogar e todos têm a possibilidade de realizar um trabalho de qualidade. Por isso estamos sempre a fazer rotatividade nas escolhas e um certo malabarismo nos recursos, de modo a manter todos satisfeitos, mas famintos de melhoria. As dores de cabeça são largamente suplantadas pelo prazer que eu e o restante staff temos. Estamos ansiosos por atingir resultados de qualidade em 2015-16.

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