O Governo e a Fábula do Escorpião e do Sapo

Tudo tem um princípio, um meio e um fim. Esta é a última crónica sobre a execução orçamental. Estivemos neste espaço, mensalmente durante cerca de quatro anos e meio, com três ministros das finanças, cinco orçamentos de estado normais (2011-a 2015), fora os retificativos, e dois governos constitucionais: o de José Sócrates e o de Passos Coelho. O objetivo inicial era o de elevar a um patamar superior o conhecimento e o debate público sobre as questões orçamentais e combater uma tendência endémica de certos candidatos a primeiro ministro de manipularem os números em período pré-eleitoral, bem como as promessas. Será que progredimos alguma coisa neste período: na sustentabilidade das finanças públicas; na transparência e no rigor orçamental em geral; na manipulação pré-eleitoral dos números?

A sustentabilidade das finanças públicas depende da capacidade de um país de manter um rácio não muito elevado entre a dívida pública das administrações públicas  e o PIB (o Tratado de Maastricht estabelece os 60%). Quando o actual governo apresentou o seu primeiro documento de estratégia orçamental (DEO2012), o rácio apresentado para 2012 era de 113,1% do PIB, seria máximo em 2013 (115,7%) e cairia para 109,5% em 2015. A realidade é como sabemos muito diversa. Os dados do INE indicam que ele terá sido de 125,8% em 2012, terá atingido o máximo em 2014 (130,2%) situando-se ainda agora nos 128,6%, ou seja, acima do valor de 2012. Há um efeito nível para cima que se explica pelo alargamento do perímetro orçamental (entrada de empresas públicas reclassificadas) e pela recapitalização quer do sector financeiro quer de empresas públicas. Mas mesmo ignorando este efeito, três conclusões se retiram: o rácio da dívida é muito elevado e estará em 2015 provavelmente ao nível de 2012. Qualquer subida das taxas de juro por razões que nos são alheias (da mesma forma que a descida se deve sobretudo a razões alheias - a intervenção do BCE) levar-nos-ia a um novo resgate. Apesar da descida do défice, que prevemos seja de 3,19% sem medidas extraordinárias, as nossas finanças não são ainda sustentáveis.     

Sobre a transparência e o rigor nas contas públicas progrediu-se bastante na última década. Aquando da primeira edição do nosso manual de Economia e Finanças Públicas (em co-autoria com A. Afonso, M. Arcanjo e J.C.G. Santos) lembro-me da opacidade total das contas da Região Autónoma da Madeira entre outras dificuldades de aceder às contas. Hoje temos mais e melhor informação, em parte graças às imposições de transparência da troika, mas também a uma vontade, que me pareceu genuína, do governo nesse sentido.

O problema está na fábula do escorpião e do sapo. Parece que há uma irresistível vontade de certos políticos de jogar com os números antes das eleições. Claro que já não estamos no primarismo de 2002 em que era suficiente Durão Barroso anunciar a descida do IVA para o aumentar depois de ganhas as eleições, ou de Sócrates em 2009 de anunciar um défice bem inferior ao que se iria verificar. Hoje há muito maior escrutínio e as explicações têm de ser maiores. Caso contrário fica a suspeita que existe manipulação com fins eleitorais. Numa anterior crónica falámos do absurdo da eventual devolução da sobretaxa, nos termos em que o governo a propõe, ou seja mesmo na eventualidade de IVA e IRS crescerem mais do que o previsto (o que só se saberá em Março de 2016), é previsível que a receita fiscal no seu todo seja inferior ao orçamentado o que torna absurda a devolução. Aquilo que não é nada transparente neste boletim, é precisamente a questão dos reembolsos em sede de IVA, IRS e IRC. Só lá está uma tabela, sem qualquer interpretação. Qualquer contribuinte perceberá que se o governo estiver a travar os reembolsos (ver Jornal de Negócios ontem), isto é, a devolver menos a famílias e empresas do que deveria, a receita fiscal (líquida de reembolsos) aparentará ser superior ao que efetivamente é, e o défice parecerá menor. Ora em 2014 os reembolsos foram de 8,2 mil milhões de euros, sendo que em relação a 2013 as variações foram de -4,1%; +12,1% e + 9,7% respetivamente em IVA, IRS e IRC. Numa estimativa que considero conservadora, leia-se favorável ao governo, da mesma redução anual nos reembolsos de IVA e da manutenção dos valores de IRS e IRC, obtenho um valor global para a sobreorçamentação da receita fiscal de 688 milhões, e que é o principal factor explicativo para o agravamento do défice (para 3,19%) em relação à previsão que fizemos no mês anterior. Portugal, continua assim com défice e dívida excessivos. O repto que deixo  a Maria Luis Albuquerque  e a Paulo Portas é que façam e justifiquem uma estimativa para os reembolsos de IVA, IRS e IRC para 2015. Sem isto falar de devoluções de sobretaxa,  e de que o IRC irá crescer, é enganar os portugueses que merecem mais e melhor.

OE2016: os fins justificam os meios?

O actual governo iniciou funções em Junho de 2011, e fez quatro anos de legislatura em Junho de 2015. Existe agora, um semestre Europeu que faz envolver as instituições europeias na apreciação dos Orçamentos nacionais, mas para isso os orçamentos deverão ser recebidos em Outubro de cada ano.  Para além disso o OE deve entrar em vigor em 1 de janeiro de cada ano. A Lei eleitoral prevê as eleições entre 14 de Setembro e 14 de Outubro. Competiria à Assembleia da República ter mudado a lei para ajustá-la, quer ao ano civil de execução do OE quer ao Semestre europeu. Não o fez e é pena. Os partidos do poder quiseram com isso ter mais alguns resultados económicos supostamente bons para mostrar, e sobretudo poder fabricar alguma ficção com os números para iludir alguns portugueses (ver texto). O Presidente da República perdeu mais uma oportunidade para exercer a sua influência, não sugerindo aos partidos a alteração da Lei, sendo que, caso fossem em Junho como aqui pugnámos, ter-se-ia uma legislatura de quatro anos.  Estas omissões várias têm um propósito claro: um melhor resultado eleitoral.

Têm, contudo, um custo elevado. Sem maioria absoluta, cenário mais provável, o partido maioritário terá que negociar ou uma coligação maioritária,  o desejável, ou um muito sólido acordo de  incidência parlamentar.   Será necessário tempo para a negociação e formar novo governo que decerto, não terá nem os mesmos Ministérios nem os mesmos programas orçamentais. Com estas alterações, e a eventual necessidade de um retificativo em 2015, tudo se complica. Não teremos orçamento promulgado antes de Fevereiro ou Março 2016, e tudo será feito à pressa. Será que os fins justificam os meios?

P.S: Resta-me agradecer ao Público, e à equipa de economia toda a colaboração e interesse demonstrados ao longo dos anos neste projeto. A crónica de opinião da cidadania activa estará, como habitual, no próximo Domingo 6 de Setembro.

* Professor do ISEG/ULisboa, Presidente do Instituto de Políticas Publicas Thomas Jefferson – Correia da Serra e candidato independente nas listas do PS de Setúbal.

 

 

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