A geografia da crise em mudança (2)

Escrever sobre a bolha da China é mais fácil hoje do que na semana passada, na primeira crónica desta série, para não falar de há sete anos, quando pela primeira vez me referi a ela. A avaliar pelos títulos de jornais de ontem, ninguém fala de outra coisa.

O que nos deve preocupar é a possibilidade de esta ser uma crise em três vagas: a primeira, quando se iniciou, nos EUA; a segunda, a partir de 2010, com a transmissão à crise do euro; e a terceira, agora, com o retrocesso dos países emergentes.

Se assim for, estaremos apenas a meio de uma crise global muito dolorosa. Muitos países em desenvolvimento carecem de regimes políticos capazes de gerir o descontentamento de sociedades populosas, jovens e agora mais exigentes perante qualquer abrandamento económico, já para não falar numa recessão mais severa ou prolongada. Quando as coisas podem correr bem a todos, são mais toleráveis a opacidade, a corrupção, a falta de qualidade de vida, a degradação ambiental. Quando a perspetiva de futuro é negativa, não.

Daí as três perguntas que ficaram da semana passada: qual é o impacto desta crise na globalização? qual é a sua natureza, cíclica ou “secular”? e terá ela consequências sobre o sistema internacional?

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Enganam-se aqueles que acham que a globalização não é reversível. Já aconteceu antes: comparativamente, o final do século XIX era mais globalizado do que os meados do século XX. Mas também se enganam também aqueles que pensam que a globalização é reversível sem drama. A humanidade retrocedeu moralmente durante grande parte do século XX, e pagou uma vastidão de sofrimento por isso. Em tese, não é impossível propor uma globalização mais justa, mais equilibrada e ambientalmente mais sustentável: não se vê é ninguém com força moral ou margem de manobra para o fazer agora.

À segunda pergunta juntam-se uma série de preocupações: o dividendo da educação e da diminuição da natalidade só se faz sentir uma vez em cada sociedade e aproximamo-nos de barreiras tecnológicas importantes nos transportes, na medicina e na automação do trabalho. Quanto mais vejo estes desenvolvimentos, mais acredito que precisaremos de um socialismo para o século XXI: não o socialismo estatista e supostamente científico do século XX, mas um socialismo da partilha e da liberdade e até precursor da ecologia como o propuseram alguns autores do século XIX (de Morris a Thoreau e Tolstoi).

A terceira pergunta é a mais decisiva. Não faltam zonas de conflito, territoriais ou culturais, internas ou externas, para um mundo onde vai havendo menos pão e cada vez menos razão. Não parece que o sistema internacional, assente num certo equilíbrio de poderes e numa ONU pouco determinante, possa fazer muito se as coisas correrem mal. Para que as coisas não corram mal será necessário extrair a política da cultura dominante de egoísmo e recriminação, e voltar a ter a grandeza de uma política com vocação humana, escala global e cultura cosmopolita. As ideologias atuais estão singularmente mal preparadas para o que nos espera.

Mas faltava uma quarta pergunta: que pode fazer Portugal, um país supostamente periférico, mas na crista dos movimentos de globalização desde há seiscentos anos? Bem, essa é para uma próxima crónica.

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