Sistema Fiscal

Na Dinamarca, os cidadãos têm uma forte consciência fiscal. Não pagar os impostos é estar à margem. O nível de fuga ao fisco é baixo e o esforço dos contribuintes também, apesar da elevada carga fiscal. Que diferença há entre os países do norte e os do sul?

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Facturas com NIF emitidas a Consumidores Finais

Fonte: Autoridade Tributária e Aduaneira

Carga fiscal em Portugal

Fonte: Comissão Europeia

Reportagem

Aqui “imposto” significa “querido” e isso diz muito sobre a Dinamarca

Às primeiras horas da manhã em Vesterbro ainda há vestígios da noite anterior. Thomas Garvin e Sara Wille-Jørgensen vivem num último andar deste bairro movimentado de Copenhaga, onde florescem galerias, lojas vintage, marcas de autor, cafés, bares e restaurantes.

Thomas e Sara preparam o pequeno-almoço aos dois filhos enquanto eles se entretêm, ensonados, à volta do tablet dos pais. Na Dinamarca, é comum um pai tratar um filho por skat. Quando se chega a casa. Quando se pergunta como correu a escola. Quando se chama alguém. Skat quer dizer “querido” em dinamarquês. Mas não é só uma expressão doce. É a palavra homónima de “imposto”.

Não são dois significados inconciliáveis. Skat parece ser a simbiose perfeita de um país que fez do sistema tributário a âncora do seu modelo social e, a partir dele, ergueu um padrão: Dinamarca, o país dos “contribuintes felizes”.

Com os vizinhos escandinavos, partilha um baixo nível de evasão fiscal, um grande nível de “moralidade fiscal” e, mesmo com uma carga fiscal alta, mantém um rendimento elevado (um salário médio líquido mensal é de 3739 euros, bem acima dos 1972 euros da média europeia e dos 984 euros em Portugal).

Dos contribuintes singulares a pequenos empresários, de universitários a jovens trabalhadores, de especialistas da área fiscal a responsáveis da administração tributária, é difícil encontrar quem não se reveja na descrição do fisco como uma instituição “amiga” do contribuinte ou quem relate situações de conflito com a administração fiscal.

Por isso Thomas e Sara estranham a pergunta. Têm receio do momento em que recebem um email ou uma carta das Finanças? A resposta de Thomas é taxativa. “Não... A relação entre os contribuintes e a SKAT [a administração tributária e aduaneira] funciona bem, sem preocupações. Há um grande nível de confiança no sistema. Como o processamento é automático, acabamos por não ter contacto real com os impostos. A ideia que tenho é que não há mal-entendidos”.

Sara é dinamarquesa e tem 34 anos, Thomas é britânico, da mesma idade, e ambos arquitectos. A forma como os dois descrevem o relacionamento pacífico entre o contribuinte e a administração – o cidadão confia na instituição, a instituição confia no contribuinte – corresponde à apreciação média da sociedade dinamarquesa sobre o fisco, diz Karina Kim Elgaard, investigadora de direito fiscal no centro de estudos sobre Estado Social e Mercado (WELMA) da Faculdade de Direito de Universidade de Copenhaga.

Thomas, a viver na Dinamarca há 11 anos, fala da sua experiência como contribuinte fazendo um contraponto com a situação no Reino Unido. “Aqui, sabemos que vamos pagar impostos, enquanto lá as pessoas têm uma perspectiva diferente – cada um tenta pagar o menos possível. Na Dinamarca, pagar impostos faz parte. Não pagar é estar à margem. E aquilo que recebemos em troca é muito diferente”. De alguma forma, completa Sara, o país foi “construindo um sistema [baseado nos impostos] que permitiu criar mecanismos para assegurar a igualdade e aumentar a confiança no próprio sistema”.

Oskar, o filho mais velho, de oito anos, está no terceiro ano da primária. Ethan, de cinco, ainda não entrou. “Há uma expectativa em relação aos serviços públicos. Sei que os meus filhos vão ter escola gratuita, universidade gratuita, saúde gratuita. Serei crítica se as expectativas não se concretizarem. Mas até agora a experiência é positiva”, diz Sara.

O que faz com que o sistema fiscal seja próximo dos contribuintes, bem percepcionado e, de uma forma geral, poupado a críticas? Karina Kim Elgaard sublinha que o sistema político soube despertar uma consciência crítica sobre o papel e a importância da máquina fiscal, que não é vista pelos cidadãos unicamente como um instrumento para cobrar impostos. “A administração fiscal é muito acessível e os contribuintes sentem que o fisco lhes está a prestar um serviço”.

Não é apenas o bom funcionamento do fisco que por si só explica esta percepção. Há uma relação triangular. À forte consciência fiscal dos cidadãos está associada uma grande mobilização dos contribuintes no pagamento dos impostos e, no último vértice, um esforço de transparência pública em relação à aplicação do dinheiro dos impostos.

Se este é um modelo globalmente pacífico, isso não significa que não haja um outro lado da história. Já lá vamos.

O ministro e a gravata
A Dinamarca é o país da União Europeia (UE) com a carga fiscal mais alta, equivalente a 51,3% do Produto Interno Bruto, acima da média europeia (39,1%) e de Portugal (34,3%). Se o nível da tributação medido pela carga fiscal (impostos e contribuições sociais) ajuda a perceber a dimensão do que é cobrado, não dá uma ideia de todo o esforço dos contribuintes. E, aqui, as peças do puzzle mudam. Um estudo da consultora PwC mostra que na Dinamarca, apesar dos altos impostos, o esforço fiscal é de 37%, inferior à média da UE (40%) e bem abaixo do valor de Portugal, que tem uma das taxas mais altas (49,5%).

Por detrás do elo de confiança com os 4,9 milhões de contribuintes dinamarqueses (sujeitos singulares) está uma figura há muito enraizada: o ministro dos Impostos. Desde 1975 que existe o Skatteministeriet, o ministério que centraliza de forma autónoma – e não na dependência do ministro das Finanças – toda a política dos assuntos fiscais. Com o regresso ao poder do partido liberal Venstre, a pasta dos Impostos passou em Junho para as mãos de um jovem ministro, Karsten Lauritzen, de 31 anos.

O ministério está dividido entre um departamento responsável pela legislação e a política tributária, uma agência de recursos tributários, a autoridade de fiscalização do sector do jogo e, finalmente, a SKAT, a administração tributária e aduaneira.

O facto de existir a figura do ministro ajudou a cimentar na sociedade dinamarquesa a importância da política fiscal, diz Jørn Rise, 59 anos, presidente do Dansk Told & Skatteforbund (o sindicato dos trabalhadores do fisco). As raízes são mais profundas e vão para além dos muros da SKAT. “Colocámos o nosso sistema fiscal no centro do modelo do Estado social. Quem paga impostos sente-se seguro em termos sociais”. O fisco é a primeira face visível dessa construção. “Os impostos são um dos pilares da sociedade dinamarquesa. Decidimos que todos temos de contribuir para o erário público. Em contrapartida, temos direito a uma série de serviços públicos ao longo da vida. Na prática, os cidadãos têm uma voz na sociedade dinamarquesa, incluindo no Estado social e no sistema fiscal” – é assim que a SKAT resume o seu sistema fiscal.

Separado pela linha do comboio do estreito de Kattegat, à vista do porto industrial de Copenhaga, a sede da SKAT é ampla e democrática, com jardins a separarem as alas do edifício envidraçado. Uma construção-espelho da administração fiscal do país, aberta e transparente. É como as imagens que nos habituámos a ver de Silicon Valley. Um edifício em open space, com muita luz, vidros largos, maçãs e pêssegos em pequenos cestos espalhados pelas mesas. Nem os matraquilhos faltam no bar do fisco.

Nos escritórios, algumas secretárias estão vazias nestes primeiros dias de Agosto. Jonatan Schloss, subdirector-geral da SKAT responsável pela área dos contribuintes, veste calças de ganga, camisa de manga-curta e sapatilhas. “Quando vou falar com o ministro uso gravata…”. Schloss, um dos seis subdirectores da SKAT, não tem gabinete. Trabalha lado a lado com uma parte da equipa do marketing e da comunicação. Todos partilham a mesma sala ampla e é ali que analisam estudos sobre o comportamento dos contribuintes.

Este é um trabalho que o subdirector-geral da SKAT diz ser essencial para que a relação contribuinte/fisco seja baseado na confiança. “Fazemos muitas análises sobre o cumprimento voluntário das obrigações fiscais, onde vemos detalhadamente quais são os segmentos de contribuintes que pagam os impostos correctamente e quais cometem erros”. Isso ajuda a evitar um novelo de burocracia e a personalizar o contacto com grupos específicos de contribuintes, diz.

Um dos segmentos onde a SKAT identifica mais fragilidades são os pequenos empresários por conta própria, contribuintes que estão a iniciar um negócio e têm pouco à-vontade com as regras. Para evitar que cometam erros, o fisco tem uma equipa de 70 pessoas que faz pequenas sessões explicativas (tipo workshops) dirigidas a pequenos grupos de contribuintes (por exemplo, a pessoas que estão a iniciar um negócio). Os empresários podem tirar dúvidas com os funcionários, trocar ideias, resolver questões práticas.

“Se vemos que alguma coisa não está correcta, partimos do princípio de que foi um erro, que não foi deliberado. E isso reflecte-se na forma como actuamos, na forma como escrevemos aos contribuintes. Tentamos tratar das questões com base na confiança, a partir da informação fiscal que cruzamos. [Nas situações de dívidas fiscais] treinamos quem está no departamento de cobrança a agir com uma atitude profissional ”, diz o subdirector-geral.

Por norma, os procedimentos de cobrança de dívidas fiscais não geram problemas, confirma Jørn Rise, presidente do sindicato. “Há sempre procedimentos que podem correr mal, mas são uma minoria. Primeiro que tudo, confiamos no contribuinte. A execução de uma dívida só avança depois de ouvida a pessoa visada”.

“Ainda que a imprensa adore trazer histórias sobre comportamentos ‘escandalosos’ da SKAT ou histórias de contribuintes sem direitos, 99% das taxas são cobradas sem qualquer problema”, completa por email Jan Pedersen, chairman do Nordic Tax Research Council e professor de direito fiscal na Universidade de Aarhus, a segunda cidade da Dinamarca.

Os níveis de fuga ao fisco são baixos. Um estudo coordenado em 2011 por Henrik Jacobsen Kleven, economista dinamarquês e docente na London Shcool of Economics, concluiu que a taxa de evasão fiscal correspondia a 2,2% do rendimento alvo de tributação pela SKAT, porque “a maior parte do rendimento (cerca de 95%) diz respeito à informação comunicada [ao fisco] por terceiros, onde a taxa de evasão é virtualmente nula”. A realidade não é, porém, a mesma entre os trabalhadores por conta própria, onde a taxa de evasão calculada por Kleven chega aos 50%.

Jonatan Schloss assegura que “entre quem trabalha por conta de outrem, entre quem é pensionista, a taxa de cumprimento voluntário é muito elevada – praticamente não há evasão”. Sublinhe-se que em Portugal, segundo dados do Ministério das Finanças, o cumprimento voluntário das obrigações fiscais é de 93,4%.

O subdirector-geral da SKAT sublinha que no sistema dinamarquês “os contribuintes não têm de se preocupar com o pagamento do imposto. Em 2014, cerca de 84% dos contribuintes não mudaram nada [em relação à declaração de rendimentos pré-preenchida]”. Schloss explica que, quando há uma alteração de rendimentos a meio do ano (o que faz com que a retenção mensal na fonte varie a partir daí), o contribuinte é contactado por email para saber que foi feito esse ajuste. “Algumas pessoas perguntam-nos: ‘Porque é que estão a enviar este email? Eu acredito no que me estão a dizer…’. Mas isto acontece porque há uma confiança no sistema. As pessoas não querem perder tempo com números ou a tentar perceber as regras”.

David A. Munch, advogado fiscal, reconhece que “o sistema fiscal é muito complexo, porque implica muitas alterações e isso, claro, dificulta a compreensão dos cidadãos”. Apesar de haver “muito trabalho parlamentar que tem a ver com a fiscalidade”, isso não gera instabilidade fiscal, diz Munch, a trabalhar em nome próprio num pequeno gabinete no centro de Copenhaga.

No caso dos sujeitos singulares a trabalhar por conta de outrem, a informatização e a automatização têm tornado a cobrança dos impostos mais invisível. Como acontecerá em Portugal em 2016 com a entrega do IRS, as declarações são pré-preenchidas e os contribuintes apenas têm de validar a informação. Na Dinamarca, conta Jørn Rise, a pegada digital “foi um processo feito passo a passo, o que permitiu minimizar aos poucos aquilo que os contribuintes têm de fazer. Não foi um longo caminho, mas foi feito pouco a pouco e, na verdade, gerou mais confiança na administração fiscal”. A entrega online do IRS começou em 1994 (seis anos antes de Portugal), mas a do IRC só chegou em 2005 (cinco anos depois de Portugal).

O fisco nas redes sociais
Uma das áreas em que a SKAT está a investir, adianta Jonatan Schloss, é a comunicação directa com os contribuintes. “Estamos a fazer uma segmentação na forma como comunicamos por email”. A SKAT tem uma equipa de 15 linguistas que têm como tarefa simplificar a linguagem dos textos, sintetizar informação, treinar colegas de outros departamentos a “traduzir” para linguagem corrente a legislação, corrigir emails ou textos publicados no site.

Para uma população de 4,9 milhões de contribuintes singulares a SKAT tem apenas 28 repartições de finanças (Portugal tem 343 para 7,5 milhões de contribuintes). A administração fiscal defende que é um número suficiente porque a maior parte das questões são resolvidas por telefone ou pela Internet. Schloss justifica que, apesar da informatização dos procedimentos e do número reduzido de balcões físicos, a SKAT não perdeu rosto humano. E explica porquê.

A forma pacífica como os contribuintes vêem o fisco levou a SKAT a entrar nas redes socais. Um território onde qualquer instituição está mais exposta ao risco da crítica, o que no caso de uma administração fiscal mais “frágil” poderia potenciar situações explosivas de denúncia de situações inusitadas, queixas de contribuintes, um mural de comentários e críticas mais ou menos abonatórias. Não parece ser o caso do fisco dinamarquês.

A SKAT decidiu lançar-se no Facebook, está presente no Instagram, no Pinterest, no Linkedin, comunica pelo Twitter e tem um canal no Youtube. Sem perder o peso institucional, ali não encontramos uma linguagem formal. Quem percorresse nos últimos dias a página oficial da autoridade tributária no Facebook iria ver que também a SKAT pintou a sua foto de capa com o arco-íris gay, associando-se à festa Pride de Copenhaga. No Instagram há fotografias dos cães das equipas das alfândegas e da inspecção e no Twitter vai publicando informações oficiais e tem uma equipa que responde às dúvidas dos contribuintes.

É comum as administrações tributárias dos diferentes países procurarem introduzir mecanismos semelhantes para aumentar a eficiência fiscal, criando economias de escala, reorganizando os recursos humanos por funções, apostando na informatização e no cruzamento de informações.

O contacto entre as administrações fiscais e a troca de ideias fomentam a tendência para a estandardização. O que é diferente de copiar modelos por inteiro. E, no caso do exemplo nórdico, diz Karina Kim Elgaard, dificilmente resultaria. David A. Munch concorda. “Há várias razões para que o sistema fiscal funcione assim. Mas não se pode dizer simplesmente ‘vamos agora copiar as regras da Dinamarca’. Definitivamente, é preciso ter uma economia que sustente este modelo e uma predisposição das pessoas em contribuir”, diz o advogado.

Para o presidente do sindicato do fisco, há no entanto lições a tirar. “Mesmo tornando os processos automáticos, será sempre preciso mão-humana na área do controlo das informações fiscais. Para que as pessoas tenham a certeza de que toda a gente está a contribuir de forma equitativa. Só assim se garante a confiança dos contribuintes. Tem tudo a ver com isto”.

Outro pilar assenta na negociação e na definição das estratégias em paz social, credibilizando a instituição, frisa Jørn Rise. O presidente do sindicato tem reuniões regulares com o director-geral do fisco. Falam todos os meses. Rise está à frente do sindicato desde 1998. E a relação com os sucessivos ministros dos impostos tem sido cordial. “Fantástica”, é a expressão. “Acaba de entrar em funções um novo ministro e escreveu-me antes das férias a pedir uma reunião aqui no sindicato. Não somos nós que vamos lá, é ele que vem cá. O ministro faz questão de vir aqui”.

A um passo da sede do sindicato, Christian Albrecht-Beste ocupa-se a reparar a pesada porta principal da igreja da paróquia de Østervold. Lá dentro, as paredes em tijolo foram pintadas de branco há pouco tempo, espalhando a luz pela nave central. Christian, cabelo ruivo penteado para trás, barba comprida, calções de ganga e sapatilhas, é o curador da igreja: faz pequenos arranjos, ajuda nas tarefas da paróquia, trata do mobiliário, acompanha as obras mais complexas. Os fiéis são poucos (duas, três dezenas nas missas de domingo). Mas são muitos os locais que contribuem através dos impostos para ver a igreja impecavelmente mantida.

No país, onde a Igreja Nacional Luterana é a religião oficial, 79% são crentes e pagam a chamada "taxa da igreja", que tem como objectivo assegurar a manutenção das paróquias e a recuperação do património. Quem não é da Igreja Luterana não precisa de pagar o imposto, mas há quem pague voluntariamente a contribuição. “Quem nasce na Dinamarca é automaticamente membro da Igreja e, quando se torna contribuinte, paga esse imposto”, diz Christian Albrecht-Beste.

Karina Kim Elgaard, da Universidade de Copenhaga, enfatiza que há muitos cidadãos que optam por pagar o imposto, apesar de não serem praticantes ou membros da igreja. Fazem-no porque consideram que devem ajudar a manter o património.

O outro lado
Se o fisco é considerado um bom exemplo internacional, há sempre um reverso da medalha. É esse o assunto que Nadja Manghezi debate, à mesa do jardim, com dois dos três filhos, Anya e Risenga.

Manghezi é o apelido do marido, o sul-africano Alpheus Manghezi, combatente da luta anti-apartheid, com quem Nadja esteve na clandestinidade em Moçambique. Nadja, de 75 anos, modera a conversa com os filhos. Estão na casa de Risenga, na zona residencial da famosa cidade livre de Christiania, uma ilha de liberdade dentro de Copenhaga. À mesa do almoço, falam-se três línguas – o dinamarquês do dia-a-dia, o português que aprenderam em Moçambique, o inglês que os une a Alpheus. A visão da família sobre o sistema fiscal e o modelo social não é indiferente a esse lado da realidade.

Anya, de 46 anos, é vice-directora da Divisão Social da Região de Copenhaga. Desbloqueia assim a conversa: “De uma forma geral, é um modelo de sociedade em relação ao qual todos estamos satisfeitos. Mas isso é ao mesmo tempo um problema: é que todos o tomamos já como ‘normal’. Em muitos países, a possibilidade de um cidadão ter acesso à educação é um privilégio e quem tem essa oportunidade faz um grande esforço. Hoje não o tomamos como um privilégio – é uma coisa natural, um dado adquirido”.

“As taxas são altas, mas para a nossa geração, como crescemos com isso, não é uma escolha”, completa o irmão, Risenga, de 42 anos. Para Anya, a discussão já não está tanto relacionada com o sistema fiscal – as altas taxas ou taxas baixas. “Não ouço ninguém dizer que preferia pagar menos impostos e não ter essas oportunidades. Temos um grande nível de equidade. Para as novas gerações (e também para nós), é completamente natural que todos tenhamos essas oportunidades iguais. Temos um modelo que permite que se discuta se queremos a carreira, a família…”.

Fala agora a mãe, Nadja: “Atenção, esta é uma discussão de pessoas que têm trabalho e que têm possibilidade de carreira. Há uma camada na Dinamarca, como em toda a Europa, de desempregados [6% da população activa em Junho]. E aí há uma outra discussão que tem a ver com o Estado social. Tem-se polarizado uma discussão entre a direita e a esquerda porque se diz que há pessoas que preferem não trabalhar porque o subsídio que recebem lhes permite não trabalhar”. E continua: “Na Dinamarca, estamos muito acostumados a dar a responsabilidade ao Estado, à instituição, a queixarmo-nos porque algo não está bem. Esquecemo-nos de tomar uma responsabilidade própria. Quando estão fora, os dinamarqueses apreciam as pessoas que, para sobreviver, têm de tomar sobre si próprias a responsabilidade da vida”.

Risenga dá o exemplo dos colegas de trabalho, em Christiania, onde fabrica bicicletas triciclo. “O meu trabalho inclui almoço quase gratuito e muitos privilégios. Mas muitos passam o tempo a queixar-se do almoço… Queixam-se por muito pouca coisa. E eu penso: ‘Bem, nunca passaram verdadeiramente mal na vida’. Se o autocarro está um ou dois minutos atrasado, isso é uma queixa?”.

A responsabilidade de Anya na Divisão Social da Região de Copenhaga mostra-lhe que “às vezes as pessoas esquecem-se de apreciar o que há de bom”, porque “para muitos dinamarqueses a única experiência de sociedade que conhecem é esta, e não há nenhuma outra para comparar”. O sistema da SKAT “é tão automatizado e integrado que as pessoas não pensam sobre os impostos que pagam”.

É assim a “grande família dinamarquesa”, sintetiza o advogado fiscal David A. Munch, falando agora sobre o futuro. “Será mais difícil manter intacto o Estado social como existe actualmente, porque as gerações mais novas têm um pensamento americanizado. Há um risco de se perder a ideia da Dinamarca como uma ‘grande família’. Se essa ideia ganhar força, será uma ameaça séria”.

Jan Pedersen, da Universidade de Aarhus, enfatiza: “Claro que muitas pessoas querem taxas mais baixas e os partidos mais à direita apanham a boleia para defender menos carga fiscal. De qualquer forma, a maior parte das pessoas está ciente de que o facto de haver altas taxas é o preço a pagar pelo modelo nórdico: saúde gratuita, educação gratuita, uma quantidade maciça de apoios à educação e aos idosos, segurança social. Em síntese, diz Pedersen, “a existência do modelo nórdico é a razão mais importante para a – relativa – grande aceitação do sistema tributário. As pessoas vêem a razão de ser dos impostos”.

Jonatan Schloss, subdirector-geral do fisco dinamarquês, diz que a SKAT está a apostar na “segmentação” dos emails enviados aos contribuintes
Thomas Garvin e Sara Wille-Jørgensen esperam com os dois filhos
Nadja Manghezi com os filhos Anya e Risenga na zona residencial da “cidade livre” de Christiania, em Copenhaga