A luz como meio e limite: Frente ao mar: a luz, fundamento pré-objectivo da existência

No Litoral Central, entre os pescadores da arte-xávega, a experiência da luz pode ser lida, primeiramente, a partir das exigências impostas pelos desempenhos próprios desta actividade sobre a esfera da visão e das práticas do olhar. Os pescadores desenvolvem uma acuidade visual permanente na vigilância do oceano e na interpretação dos signos indiciadores do seu comportamento, seja na própria superfície da grande massa líquida ou nos elementos que lhe são contíguos, na atmosfera e no céu: as ondas e os seus modos e locais de rebentação, os ventos, o voo das aves, as nuvens, a lua e as estrelas. O mar precisa de ser atentamente observado, para que dessa experiência de observação acumulada possam resultar decisões acertadas para o bom desempenho técnico e haliêutico por parte dos arrais — aspecto crucial num meio marcado pela incerteza e pela imprevisibilidade.

A luz é, efectivamente, o meio que possibilita a abertura do Ser num mundo iluminado. Vemos na luz e com a luz; mas em si mesma, a luz não pode ser vista — ela é a condição da interacção entre o globo ocular e as fontes de radiação luminosa que orientam o movimento, as direcções e os percursos que constituem a nossa experiência do mundo e permitem diferenciar brilhos, tonalidades e cores, em sinestesias caleidoscópicas conjugadas com a temperatura, a humidade, o vento e, claro, todos os sons do “mundo-ambiente” (Tim Ingold). Os seus limites definem-se, necessariamente, como parte da totalidade do nosso sistema perceptivo e das múltiplas possibilidades de ser e estar no mundo, pois a visão pressupõe um complexo de ligações neuromusculares, feixes de motricidades, algoritmos motores, corporalidades… Bem dizia Goethe que “o olho deve a sua existência à luz”. E é por isso mesmo, também, que a sombra e a treva constituem igualmente a base arquetípica de uma experiência contrastante, de oposições, alternâncias, ritmos e padrões por meio dos quais as actividades humanas sempre procuram arrancar ao mundo um excedente de sentido, transformando fragmentos de acaso em necessidades da evidência, como propunha Abraham Moles.

Porém, nos contextos marítimos e piscatórios aos quais se reporta a minha experiência de terreno enquanto antropólogo, a luz é não só meio e limite, como também, e sobretudo, excesso. Boa parte da reflexão antropológica produzida em âmbito disciplinar assenta, aliás, em elaborações acerca da variabilidade cultural deste excesso e das formas de o regular, compreendendo a inserção ambiental e a concomitante vinculação identitária de cada grupo, tribo, sociedade ou nação – desde logo, a partir dos planos da sexualidade e da alimentação, funções essenciais para assegurar a manutenção e a continuidade dos grupos sociais. Desta perspectiva, as vicissitudes do processo reprodutivo e as suas codificações criativas, atributos originais do espírito humano, são sempre expressão de uma matriz de possibilidades infinitas plasmadas no mundo-ambiente em que habitamos; de uma vontade de ser que une o passado, o presente e o futuro, a vida e a morte, o visível e o invisível. Na esfera das relações económicas, este excesso pode assumir forma de excedente, “parte maldita” (Bataille) destinada à destruição ou, inversamente, à acumulação, quando as sociedades não impõem narrativas que limitem a pleonexia. Na esfera dos imaginários, onde se produz também a nossa experiência do mundo e do outro, é o eterno excedente de sentido, flutuabilidade do significante, indeterminação…

A observação e a interpretação do modo de vida piscatório levaram-me à constatação de que a necessidade de exercer controlo visual sobre o meio envolvente extravasa largamente as exigências técnicas da profissão e insinua-se nas relações sociais, políticas e económicas do grupo, definindo sentidos que tornam legível a alternância cíclica característica do meio – daquele mundo-ambiente vivido ou sonhado onde o céu e o mar se confundem simbólica e plasticamente (isso mesmo no-lo mostram, por exemplo, as cores das paisagens da beira-mar de António Carneiro ou as palavras aguareladas de Raúl Brandão acerca da Ria de Aveiro, ambas tão plenas de luz). A vivência desta alternância comporta, pois, uma dimensão moral que a prolonga na explicação da ocorrência do infortúnio que cíclica mas imprevisivelmente, atinge as companhas de pesca — a “má-roda” — e, até, da própria arbitrariedade da experiência do mundo e das relações que o constituem, entre memória e intenção. Os excessos do olhar, neste contexto, revelam-se na ocorrência das inúmeras práticas e discursos que operam a incorporação social do acaso, ou a domesticação do aleatório — explicação do impossível — fazendo emergir o chamado “síndroma etnográfico bruxa-olho-inveja” (Carmelo Lisón Tolosana).

E se a luz pode ser entendida como uma experiência de ser e estar no mundo que é ontologicamente anterior à visualização das coisas que o constituem, (Tim Ingold, M. Merleau-Ponty), não é menos certo que um dos seus limites possa residir na própria estrutura granular, quântica, da linguagem (Jakobson), sem a qual não há conexão relacional ao mundo e ao outro.

Francisco Oneto Nunes é antropólogo, fez pesquisa de terreno no Litoral Central português e é Professor de Antropologia no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, onde se doutorou, em 2006, com a tese “Hoje por ti, amanhã por mim: a arte-xávega no Litoral Central português”. Foi o vencedor da 1ª edição do prémio Octávio Lixa Filgueiras do Museu Marítimo de Ílhavo.     

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Um fragmento do 'mundo-ambiente' da arte-xávega, pelo olhar de João Vaz ("Figuras e barcos na Praia", 1912)