A criatividade que nos consola

Portugal voltou a ser, neste Verão, um dos países onde as actividades artísticas e criativas mais se desenvolveram, apesar da generalizada falta de apoio estatal à criação.

Numa Europa que politicamente se desagrega enquanto projecto comunitário, com o “fantasma” grego bem presente, Portugal voltou a ser, neste Verão, um dos países onde as actividades artísticas e criativas mais se desenvolveram, apesar da generalizada falta de apoio estatal à criação, mobilizando muitas dezenas de milhares de pessoas para festivais e outros eventos que juntam a música, o turismo, a gastronomia, o artesanato e o património natural e edificado.

Nem é preciso consultar estatísticas (as falíveis e as outras) para se perceber que estamos na primeira linha desta oferta singular, que nos permite dizer que quem não tem inventa e que quem tem menos desencanta a maneira de passar a ter um pouco mais. E que não se diga que este é um sinal comprovativo da nossa recuperação económica, porque a recuperação económica é outra coisa e já nos anos mais críticos esta dinâmica existiu e deu reconhecidos frutos. Somos como somos e fazemos hoje, neste Portugal onde prolifera o desemprego e de onde tanto se emigra, o mesmo que fizemos, espalhados por esse mundo quando tivermos de lançar raízes noutras terras e de lançar pontes de diálogo e descoberta com outras gentes. Estava muito distante a realidade digital e global de hoje, mas a verdade é que já éramos assim. E assim ficámos, para o melhor e para o pior.

Esta realidade inscreve-se no conceito de indústria criativa defendido por Richard E. Caves no seu livro de referência Creative Industries-Contracts Between Art and Commerce (Harvard University Press), onde se diz que “as “indústrias criativas”, nas quais o produto ou o serviço contêm um substancial elemento artístico, receberam uma surpreendente escassa atenção dos economistas. (...) Os economistas, orgulhosos do seu aparato teórico e facilidade de manejar ferramentas estatísticas, estão fora destas indústrias porque encerram poucos dados fiáveis”. Por outro lado, prossegue o autor, “as actividades frívolas dificilmente suscitam a abordagem intelectual que merecem indústrias como a do aço, a farmacêutica ou a da informática”.

A verdade é que as indústrias criativas que estabelecem dinâmicas de cooperação imediata e de desenvolvimento com o comércio, com a restauração, a hotelaria e a sociedade em geral, sem assessores ou consultores pomposos e dispendiosos, geram receitas crescentes, fortalecem o optimismo, promovem o diálogo inter-etário, envolvem e mobilizam as estruturas locais, designadamente as de tutela autárquica e fazem proliferar a oferta artística e cultural, mesmo que se comprove que não faz sentido tanta diversidade em territórios pequenos sem formas concretas e estimulantes de entreajuda.

As carências estruturais das autarquias, com crescentes responsabilidades em áreas como a educação ou o apoio social, não as impediram de ser renderem à tentação de ter um festival de “jazz”, de música do mundo ou de qualquer outra disciplina que gere novas energias, atraia públicos e beneficie as estruturas da hotelaria e da restauração, mesmo com o IVA que ainda temos, e com a possibilidade de haver outro muito semelhante num dos municípios vizinhos. Depois se verá.

Este tipo de eventos mobiliza a estruturas locais, atrai a juventude de outras localidades e regiões, cria a atractividade mediática que leva os “media” a falar da terra, das suas tradições e da sua gastronomia e património e acaba por gerar receitas de outra forma inatingíveis ao longo do ano. Richard E. Caves, no estudo efectuado sobre o mercado norte-americano, refere a ausência de dados que possam suportar sofisticados métodos estatísticos. Trata-se de uma realidade nova e em mutação constante. O que acontece num ano fornece indicadores e abre portas, mas nada garante que assim aconteça nos anos seguintes. Esta situação exige atenção, criatividade e abertura de espírito, e existem muitas formas de estimular e encorajar quem, com a minguada esperança dos ciclos de crise, se aventura por estes terrenos, à espera de melhores tempos, de melhores dias.

É importante que o novo governo, saído do acto eleitoral próximo, tenha, em relação a este assunto uma visão moderna, dinâmica e de efectivo encorajamento, nunca se tentando substituir a quem, no terreno, cria e inventa, promove contactos e abre janelas para novas experiências e aventuras. Este é o caminho do risco e do fascínio da aprendizagem constante, que junta música, feiras do livro e do artesanato, festivais gastronómicos e visitas guiadas e bem enquadradas ao património não recuperado que é imperioso proteger e conhecer.

Sabe-se que, na Grécia, mesmo muitas centenas de actores desempregados, continuam a fazer teatro e a atrair públicos. Lá como cá, quem baixa os braços rende-se. A imaginação e a criatividade de quem mantém acesos estes focos de produção local merecem ser estudados por sociólogos e economistas e percebidos pelos políticos, porque promover com êxito este tipo de acções é diferente de ir a Bruxelas carpir mágoas de noite inteira pela lenta agonia de um projecto de união que ninguém sabe como e para onde irá, com ou sem novos e abusivos directórios governativos.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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