Sondar no escuro

Por “um erro de geografia amorosa” deixou Portugal há dez anos. Contista, poeta, romancista e ensaísta, António Cabrita tem vinte livros publicados. A colectânea de contos Éter é o mais recente. É urgente ler este inventivo prosador.

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Nesta colectânea de oito contos está bem visível a tensão entre a memória pessoal do narrador e o esquecimento da História Graça Ezequiel

Há nomes na literatura portuguesa que se mantêm, desde há vários anos, fora do roteiro dos encontros literários e dos pequenos e grandes festivais. Uns por vontade própria, outros por razões que se mantêm mais ou menos obscuras.

De entre três ou quatro nomes que de imediato ocorrem, há o de António Cabrita (n. 1959), que foi jornalista durante mais de duas décadas (crítico de cinema e de livros), e que há dez anos decidiu emigrar para Moçambique, país onde actualmente vive e ensina dramaturgia e teoria prática de guiões. Tem vinte livros publicados – dez de poesia, oito de prosa e dois de ensaios. Em 2013 publicou em Portugal o seu primeiro romance (originalmente publicado no Brasil, em 2011), A Maldição de Ondina (Abysmo). Recentemente saiu para os escaparates Éter, uma colectânea de oito contos onde está bem visível a tensão entre a memória pessoal do narrador e o esquecimento da História (memória colectiva). Para ilustrar esta ideia, recorremos a uma citação de A Maldição de Ondina, embora num contexto diferente: “Não conseguimos dormir completamente, e por isso não conseguimos esquecer (…) Estamos em eterna vigília sobre o nosso passado (…) E sem conseguirmos resgatar a capacidade de esquecer, não conseguimos superar o ressentimento e atingir o perdão.”

No primeiro conto, Coração Quase Branco – que tem um dos melhores começos de livros nos últimos anos: “Ainda não me saíram da pele os teus quatro tiros de caçadeira.” – um alfarrabista em Lisboa mata a mulher, o filho e o gato, antes de se suicidar. O narrador, um ornitólogo em Maputo, resgata a memória que ficou do acontecimento, ao mesmo tempo que a tenta reinventar, isto enquanto vai evocando a tensão que cresce nas ruas de Maputo. A escrita parece surgir assim como uma tentativa de aclaramento de algo que ainda é turvo. Em conversa com o Ípsilon, desde Maputo, conta António Cabrita: “O meu pai, que era operário e teve uma infância violenta, era como uma pedra viva, alguém de uma sensibilidade magoada mas com dificuldade em conseguir traduzir por palavras o que sentia, um homem de grande laconismo, que comunicava muitas vezes de uma forma não-verbal, aliás, tal como uma tia minha, surda, muito presente na minha infância. A escrita em mim forjou-se entre a necessidade de superar a inabilidade do meu pai e o “handicap” do silêncio da minha tia – levei décadas a lutar contra as palavras para que consentissem comparecer quando era necessário ter a expressão precisa ou a tentar suborná-las, para que não me reduzissem ao silêncio. Ou seja, não cresci dotado para os saltos na mesa alemã da escrita, não foi fácil sincronizar a expressão e o discernimento, e por isso fui levado a desconfiar das evidências e a encarar a vida como uma tarefa a decifrar. Posto o que o acto da escrita durante anos funcionou para mim como uma espécie de autognose, de farol em intermitência. Felizmente, nesta altura, limito-me a escrever já não me torturo com as minhas opacidades ao espelho.”

Continuando ainda nesse conto de abertura – e cujo título parece querer evocar um romance de Javier Marias – toda a ambientação da história remete o leitor para uma Lisboa literata, onde estão nomes de surrealistas conhecidos (mas não só). Cabrita confessa que teve “encontros fantásticos na vida”, e nomeia Grabato Dias, Seixas Santos, Al Berto, Maria Velho da Costa ou Herberto Helder. E acrescenta: “a pessoa com quem discuto as minudências das serrilhas de tudo o que escrevo é o Helder Macedo”. Este primeiro conto leva-nos, de algum modo, a interrogar o lugar do “amoral” na literatura, não no sentido de juízos do bem e do mal, e não no sentido de “imoral”. “África, descontado o exotismo, devolveu-me um sentimento trágico da vida”, diz Cabrita, “aqui, o fluxo da ‘normalidade’ não é linear, é visível na bainha do quotidiano uma irradiação ‘anómica’ por onde o mal, a violência, a indiferença e o assombro penetram e tomam diariamente café à mesa da alegria e dos parcos sinais de ordem, é manifesto que há um combate. Isto dito de fora parece um cliché, vivido e experimentado é muito diferente. Claro que estes indícios existem em todos os lugares, é uma questão de escala e de doseamento, mais intensos por aqui. O que me afasta do medo de ‘ultrapassar os limites’ morais, não há limites, pois como dizia o Nietzche, ou somos condicionados pelo ressentimento ou engendramos a via do sim”. 

Inventar a memória
Em Éter a linguagem, bastante inventiva, parece correr, mudar de direcção, ter ritmo próprio, por vezes em jeito de derrame, outras a corresponder à lentidão necessária do que é contado. António Cabrita mostra nestas narrativas toda a sua mestria com as palavras, precisão, criatividade e trabalho esmerado. As histórias avançam como para um encontro com o desconhecido, e arrastam o leitor para o seu desenlace ora trágico ora hilariante, ou ambos, como no conto polifónico Chinas e Matraquilhos em que um pai idoso vai com os dois filhos numa viagem de carro pela Catalunha num derradeiro esforço para se conhecerem e morre durante essa viagem; os filhos regressam a casa com o corpo, e durante a noite o carro é roubado com o cadáver na bagageira; a história continua de maneira assombrosa (literalmente). “Nos contos prefiro não saber demais quanto ao que há a contar, não planear demais para que possa sondar no escuro e ser surpreendido com o que vem” diz Cabrita. Se fosse um romance seria diferente, pois “é mais próximo da engenharia e exige outro tipo de estrutura, de cálculo e de disciplina, o desafio é mais pesado”.

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Orlando Neves

O lugar da acção dos contos ora é Portugal ora Moçambique, ou ambos. É difícil não ter a tentação de tentar encontrar ali naqueles vários narradores (há pelo menos um deles que se chama António) algo de aproximação autobiográfica. Na conversa tida Cabrita refere, para ilustrar, o que se passou aquando da publicação de um outro livro seu, As Cinzas de Maria Callas (Teorema, 1998), em que na contracapa escreveu que os contos haviam sido escritos sob influência do filme Amarcord, dizendo que nele recriava atmosferas da infância e do meio social em que estava inserido – a  periferia de Lisboa na década e meia antes do 25 de Abril e logo após. “Isto é, setenta por cento do que lá está não se passou, foi inventado, e só trinta por cento é que parte do vivido, devidamente transfigurado”, diz. No entanto, o livro foi recebido como se estivesse a trair alguma coisa que na verdade nunca se passou. Continua: “ao imprimir uma narrativa a uma infância vivida em circunstância similares ou permeada por acontecimentos sociais comuns, criei um efeito de verosimilhança por cujo crivo os meus conhecidos – que na generalidade nem aparecem, ou se sim, com nomes distintos e alterações caracterológicas – se sentiram julgados. Imaginemos todos aqueles professores figurados no “Amarcord” a meterem em tribunal o Fellini por se sentirem caricaturizados. Isto, para explicar que nunca sabemos como vamos ser lidos, o que a leitura desperta nas pessoas.” Diz ainda da importância da descoberta que fez dos romances de Henry Miller, que contava os mesmos episódios em vários livros sob ângulos absolutamente diferentes, como se a sua captura do passado só fosse possível à medida que o inventava. “Nunca mais consegui traçar uma fiável linha de fronteira entre a fantasia no Borges e o confessionalismo em Ruben A., por exemplo, e a única coisa que me importa é o modo como está narrado.”

Há dez anos a viver em Moçambique por “um erro de geografia amorosa” – “preferia ter-me apaixonado por uma norueguesa”, brinca Cabrita – dedica-se ao ensino e à escrita (o que inclui também a escrita de guiões para cinema e televisão). O país para onde emigrou é não apenas o palco de alguns dos contos de Éter mas também do romance. Para Cabrita, o que Moçambique lhe trouxe à escrita chegou por via indirecta, ao facto de ser um anónimo e de ninguém antecipar uma ideia sobre o que viria a escrever. Foi este retorno ao anonimato que lhe devolveu à expressão “o jogo, o impulso e a espontaneidade que o facto de ter um nome sempre desacelera, mitiga e periga”. “De repente era o par de luvas esquecido num banco da gare de comboio. Eu aqui não tinha nove livros publicados, nenhum artigo”, diz António Cabrita. “Aguentar-me no anonimato tem sido a jangada mais apetecida, e tem-me lançado em portos e geografias nunca cicatrizados. E fez-me descobrir um lastro, um cerne, que não depende de qualquer reconhecimento social.”

Apesar de se considerar um narrador “à antiga”, um contador de histórias sem preocupações de infringir regras ou de inovar, Cabrita fá-lo, e isso é bem notório em Éter. Quando experimenta é porque essa solução veio ao seu encontro para aquele tipo de história. Diz que não tem veleidades quanto a isso, porque afinal “tinha ambições era como poeta – e tenho 500 páginas inéditas, que venha um incêndio e me traga sossego! – e comecei tarde na prosa. Perdi muito tempo nos jornais, durante quinze anos só escrevia artiguelhos e bebia extenuadamente. Quando se bebe demasiado fica-se uma rolha à tona de água, e amortecidamente contentes por estarmos à superfície não vasculhamos os leitos do fundo.”
 

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