A educação de Sofia

Sofia Gomes fez Belas Artes e acabou na afinação de piano. É a única mulher em Portugal nesta profissão. Tem 26 anos, tantos quantos o seu mentor, Fernando Rosado, leva de experiência num mercado tão específico e onde os “melhores se contam pelos dedos das mãos”, como nos diz o pianista Filipe Melo.

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As mãos agarram a tecla e pressionam-na contra a roda da máquina de polimento. No ar há um ligeiro cheiro acre, como quando se cheira fusível queimado. O trabalho é ritmado, contínuo, prolongado. Exige firmeza de braço e concentração a rodos. Nada pode falhar “ou acabamos com lâminas espetadas nas mãos”, avisa Sofia Gomes, 26 anos e a única portuguesa afinadora de pianos.

Tenta evitar a conversa sobre género mas sabe que circula num mundo de homens — na oficina são três, contando com o “mestre” Fernando Rosado, com quem tem vindo a aprender o ofício desde que saiu das Caldas da Rainha para “vir trabalhar o ouvido”.

No armazém da Cruz Quebrada que serve de quartel-general à empresa de Fernando Rosado, o ambiente não parece incomodá-la. Contorna pianos desbarrigados à espera de restauro — a verdade é que se vai desculpando pelo aparente caos — antes de chegar à ampla sala onde estão uns Yamaha de cauda imaculados.  Percebemos que é aqui que as suas horas se estendem entre mecânicas, tampos harmónicos, cepos e cravelhas, martelos, forquilhas e teclas a precisar de polimento.

 Diz a escritora-mistério italiana Elena Ferrante que é “uma pessoa que trata da vida de todos os dias transportando sempre um livro e um bloco de notas na mala de mão” (Ípsilon, 17 Julho). Desde há um ano que da mala de Sofia — que agora se senta num dos bancos de piano e a pousa para nos mostrar de que é feito este instrumento — saltam uma chave de afinação, objecto que mede quase dois palmos e deve pesar perto de 1,5kg, um diapasão e as cunhas. “Ainda estou para perceber qual será, nesta profissão que é tão específica, a minha dotação por ser mulher. Dizem que somos mais sensíveis aos sons agudos por estarmos treinadas por causa das crianças, mas eu... nem isso ainda”, ri-se.

Fernando Rosado explica a situação de outra maneira: “Não há fórmulas mágicas nem pessoas sobredotadas. O que pedi à Sofia foi dedicação absoluta. Motivação e focalização no objectivo é os 50% que precisamos para o sucesso. Assumo que tinha vontade de formar uma mulher — já formei nove homens — por sentir que faltava na profissão uma sensibilidade feminina. Quando comecei a formar pessoas, preocupei-me com o número — não havia afinadores suficientes. Agora, que o mercado atingiu um certo equilíbrio, preocupa-me mais a questão da qualidade. É o momento em que ‘mais é menos’. E a Sofia reúne condições intelectuais, filosóficas e artísticas que nos levaram a criar um processo simbiótico de motivação mútua.”

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A chave de afinação mede mais de palmo e meio e passou a ser uma das três ferramentas na mala de Sofia Gomes, a par com diapasão e cunhas

Podemos dizer que a culpa cabe inteira nas mãos de um pianista austríaco. A história conta-se em poucas palavras. Em 2011, na Semana Internacional de Piano de Óbidos, ia ouvir-se Mozart e Beethoven, compositores aos quais Sofia estava particularmente atenta desde que tinha começado as aulas de piano no conservatório das Caldas da Rainha.

Paul Badura-Skoda ia a meio do recital quando interrompe para afinar uma nota. Ela lembra-se de ficar agarrada ao assento. “Começo a ouvir a afinação, aquela nota. Penso: se calhar a minha relação com o piano é outra. Era um momento raríssimo, geralmente nunca é o próprio [a afinar]. Um pianista sabe que algo está a soar mal mas não consegue traduzir o que se passa e fica-se numa neblina de incompreensão.”

A esse momento iniciático seguiram-se coincidências felizes. Ou “epifânicas”, como ela prefere dizer. Calhou estar num curso com o pianista Filipe Melo, no âmbito do Festival MusiCaldas, a quem expressou vontade de se tornar “técnica de piano”. É Filipe a lembrar: “Esses cursos já nem existem... Era uma semana muito especial, todos fechados numa salinha, e desse grupo de estudantes uma grande percentagem veio a tornar-se músico profissional. A Sofia pareceu-me muita séria.”

Foi este pianista de jazz, que é também realizador e autor de banda desenhada, a accionar o contacto com o seu afinador de longa data e a pessoa que lhe vendeu o seu primeiro piano, tinha ele 14 anos. Fernando Rosado apresentou-lhe as contrapartidas: ela teria de estudar exaustivamente a estrutura do instrumento, reconhecer marcas e saber o seu historial, mergulhar na partição, na harmonização, na mecânica. “Tenho um grande cuidado com a futura integração no mercado de trabalho. Não é um devaneio meu quando envio alguém em formação para aquele trabalho, naquele dia, naquele local. É praticamente científico e cirúrgico”, esclarece o mentor.

Para Sofia, o que se seguiu foram muitos fins-de-semana na estrada, com bilhete de ida e volta entre Caldas e Lisboa. “Não posso dizer que seja disciplinada. Mas sou obsessiva, seja a perseguir uma ideia artística ou a mergulhar no trabalho até à náusea.” Sintomas de perfeccionismo? “Sim. Estou sempre a testar-me. Já estive três dias só à volta de um eixo, que é uma peça ínfima na mecânica mas essencial porque faz o martelo mover-se numa certa direcção”, exemplifica.

Sofia Gomes chegou aqui depois de fazer Belas Artes, na Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha. Vagueou uns meses por Madrid — “precisava de provocar um divórcio com as manifestações artísticas” — e foi cozinheira para ganhar dinheiro. Agora, sobretudo desde que se mudou para Lisboa, voltou a pintar a carvão, faz fotografia e tem o projecto 7CPS com Sílvia T., com quem tem vindo a partilhar ideias num território comum que é o som, ela como afinadora em Lisboa e Sílvia como compositora no Porto (o resultado tem sido apresentado em exposições individuais onde ambas exploram o texto, o desenho, a partitura, a fotografia).

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Sofia Gomes durante a afinação em casa de um particular

“Há quem diga que os aprendizes têm de ultrapassar os mestres, não é?”, graceja para nos explicar que faz o tempo esticar entre os dias a trabalhar na afinação, seja em instituições como a Escola Superior de Música, o CCB ou em pianos de particulares, e as noites a pintar um A3 a carvão se estiver para aí virada. É nessas alturas que ouve a folk de Angel Olsen e os sons que o tunisino Anouar Brahem arranca do seu oud, dois fascínios recentes.

E como é que alguém cujo ouvido está a ser treinado para o dissonante ainda percebe a harmonia? Se ouvisse tudo como um afinador seria um desastre. Ela ri-se com a ideia. A verdade é que passou a ouvir diferente, pôs os auscultadores de lado e detém-se nos ruídos que lhe chegam da rua, por exemplo. Pode também ser traumático, avisa. Percebeu recentemente como o seu ouvido está mais sensível depois de oito horas a afinar pianos: “Fica saturado, até sinto a vibração no tímpano com o chiar dos travões de um comboio.”

Não se chega à afinação por curso universitário. É fruto da experiência, do conhecimento da mecânica de um instrumento com 88 teclas e que pode chegar a pesar 490kg. E é também a procura incansável do uníssono, “essa frequência perfeitamente igual entre duas ondas sonoras. O som é o fim de um longo processo condicionado por todo o movimento feito pela tecla, desde o dedo à corda, desde os finos papelinhos que existem por debaixo das forquilhas e que impedem o martelo de se mexer mais à direita ou à esquerda, às lãs que têm de estar completamente paralelas para nivelar as cordas”. Quando é a própria a escrever sobre esta ideia de uníssono, a coisa sai-lhe mais poética: “O que apenas há, nas dimensões que podemos nós captar, é o acidente. (...) O uníssono está entre os batimentos mais audíveis e mais desconcertantes. Quanto mais próximas estão as frequências, mais choque criam. À medida que se vão afastando, vão-se tranquilizando, até fazerem intervalos perfeitos. O uníssono é o silêncio dentro do conflito” (em Diário de Afinação no seu blogue https://cravelhasemoscas.wordpress.com)

A sua primeira intervenção foi ainda nas Caldas da Rainha, num Ferd Thürmer de 1920 que “teve de ir mudar molas, tinha uma corda partida e precisou de algum restauro”, recorda. Levou-lhe muito tempo, como diz ser normal com pianos antigos de particulares que têm de ir ao expurgo, levar cabeças novas, trocar materiais. “Por que é que uma tecla não toca? Se calhar porque tudo lá dentro está posto em causa, as fitas estão rasgadas ou descoladas, as molas partidas...” Diz ter aprendido que o tempo nesta profissão é muito diferente do de outras e nisso é quase como se todo o processo pudesse ser catártico: “Sei que nunca vou parar de aprender. O Fernando tem 26 anos de experiência, os mesmos que eu tenho de vida, e vejo que há coisas que ainda o surpreendem...” É que a afinação de um piano é um instante de quase coincidência, para logo depois começar em decomposição, a desfazer-se. “Mas é a dissonância que traz um certo charme à profissão”, conclui.

Um afinador catalão, Joaquim Salamanca, explicava em 2011, numa entrevista ao diário elPeriódico, que “a técnica [de afinação] não é difícil. Difícil é aplicá-la a cada piano”. Sofia reflecte sobre estas palavras. Confessa que passou a ter uma “relação emocional com este ser vivo, um organismo em constante transformação porque a madeira é viva e está sempre em movimento”. Como nas artes, a sua ligação, sensorial até, é com a matéria. Quando não estava a tocar, Alfred Brendel escrevia que o piano é “o objecto da transformação. Pode sugerir a voz, timbres de outros instrumentos, uma orquestra, se o pianista assim o desejar. Esta propensão para a metamorfose, esta alquimia, é o nosso privilégio surpremo”. (A pianist’s A-Z, a piano lover’s reader, edições Faber and Faber).

Sofia Gomes percebeu tudo isto nos três dias em que esteve a trabalhar na última edição de Dias da Música, no CCB, até agora dos mais difíceis no seu curto currículo. Ficou encarregada de uma sala sujeita a mudanças térmicas bruscas: “[A sala] levava umas 200 pessoas, o que já de si trazia bastante humidade. A acústica tornou-se difícil e nos intervalos dos concertos o ar condicionado subia ao máximo. Eu tinha 15 minutos para retocar o piano mas os primeiros sete, como as máquinas do ar faziam barulho, eu nem conseguia ouvir os batimentos.”

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Nesse mesmo mês, Abril, também lhe sucedeu o inverso e acabou por ter o elogio do pianista espanhol Iván Martín, que esteve em Sines para tocar Carlos Seixas e Antonio Soler no Festival Sem Sombras. “O piano era uma Yamaha C5 e na verdade já estava a soar muito bem. Fiquei a assistir ao ensaio durante horas, o Martín é completamente obsessivo e não consegue parar de tocar. Mas soube dizer-me claramente como queria o piano.”

Um trabalho de “poesia do som” são as palavras que Filipe Melo usa para descrever a relação que se cria entre pianista e afinador. “Um bom afinador faz com que tudo soe tão bem que a atenção se dirige apenas para a música. Parece que o piano toca sozinho. E bons afinadores em Portugal contam-se pelos dedos das mãos.”

Recuemos ao momento em que Badura-Skoda interrompe o recital para afinar o instrumento. Sofia compreende hoje o conflito presente naquele gesto que veio questionar o trabalho de um outro profissional. Melo ajuda a contextualizar: “Se tivesse de afinar o meu piano, provavelmente até conseguiria mas nunca iria ter um som profissional. Qualquer harpista, que trata da afinação do seu instrumento, lhe dirá que pode levar mais horas a afiná-lo do que a tocar. Mas num piano não é nada fácil porque na maioria das notas temos três cordas por cada nota e a experiência de um afinador poupa-nos tempo.”

A ela, o que a faz correr? Debruça a cabeleira ruiva em cima do tampo harmónico e quase murmura: “Este é um ser que dá luta. Já limpei um piano do princípio ao fim, esfreguei as cordas com pedra-pomes e uma borracha até ficar com tonturas. Puxa por nós, até em força física. E depois tem o outro lado, o da delicadeza total de som.”

 

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