Quem são os Santos?

Esquecemo-nos de perguntar o que está por trás de um nome. Santos-o-Velho, Santos-o-Novo. Quem são os misteriosos santos que assim marcaram a cidade?

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Falamos da zona de Santos, do bairro de Santos, da (antiga) freguesia de Santos. Mas não paramos para fazer a pergunta: de que santos estamos a falar? Santo António? São Vicente? Ou serão Todos-os-Santos? Os santos em geral ou algum em particular?

Comecei a pensar nisto depois de uma visita ao convento de São Pedro de Alcântara, recentemente aberto ao público. A capela chamada dos Lencastres — onde está sepultado D. Veríssimo de Lencastre, filho de D. Filipa de Vilhena, Arcebispo de Braga e Primaz de Espanha, conhecido como o Cardeal Inquisidor — é dedicada aos santos mártires Veríssimo (que deu o nome ao cardeal), Máxima e Júlia.

Foi aí, enquanto olhava para o magnífico trabalho de pedra que decora toda a capela, que começou a minha história com os Santos.

Então, de São Pedro de Alcântara viajei para a zona de Santos à procura de sinais de Veríssimo, Máxima e Júlia. Temos que recuar aos tempos romanos, aos anos de 303 ou 304, para encontrar estes três irmãos — que segundo alguns relatos teriam vindo de Roma até Lisboa mas segundo outros eram naturais desta cidade — e que foram supliciados e executados por ordem do prefeito Daciano.

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Há quem se refira a eles como “crianças”, mas nada encontrei que referisse concretamente a idade que teriam. O que se sabe é que se apresentaram por vontade própria ao executor dos éditos imperiais e declararam a sua fé cristã. Diga-se em abono do romano que este terá tentado dissuadi-los mas, não conseguindo, viu-se forçado a mandá-los prender. O que se seguiu foi terrível: os três irmãos foram torturados de todas as formas imagináveis, com unhas de ferro, lâminas em brasa e, ainda vivos, foram arrastados pelas ruas de Lisboa para acabarem degolados.

Os seus corpos foram depois dados às feras para que os devorassem, mas conta a lenda que os animais não tocaram neles. O juiz que os tinha sentenciado determinou então que fossem lançados ao mar atados a pesadas pedras. Mesmo assim os corpos voltaram a dar à praia em Lisboa, precisamente na zona que hoje conhecemos como Santos.

Os cristãos da cidade recuperaram os corpos e enterraram-nos no local, construindo-lhes um templo. Mais tarde, já durante o período muçulmano, este templo teria sido destruído e dele teriam restado apenas três pedras. Depois da conquista da cidade por D. Afonso Henriques, este mandou erguer no local uma nova igreja dedicada aos santos mártires.

Pelo templo de Santos passaram os monges militares de Santiago e Espada e depois, após a partida dos monges, ali recolheram senhoras que ficaram conhecidas como Comendadeiras. Terão sido elas a descobrir os supostos restos mortais dos três mártires, que aí foram mais uma vez sepultados.

Mesmo assim, Veríssimo, Máxima e Júlia não encontraram descanso.

Por ordem de D. João II, em 1490 as Comendadeiras foram transferidas para outro convento. É então que nascem os dois nomes que hoje nos são familiares: Santos-o-Velho, o local do convento e igreja originais, e Santos-o-Novo, o novo mosteiro acima de Santa Apolónia para onde foram levadas, pelas Comendadeiras e numa procissão solene que atravessou a cidade, as ossadas que se acreditava pertencerem aos três irmãos.

Os santos mártires atravessaram a cidade mas é como se não tivessem querido abandonar definitivamente o lugar onde há muitos séculos os seus corpos deram à costa. Na fachada da Igreja de Santos-o-Velho existe uma pedra na qual estão esculpidas em relevo as figuras de Veríssimo, Máxima e Júlia, os três de chapéu e segurando um bordão — uma imagem em que não parecem crianças. No interior da igreja, no altar-mor, os irmãos surgem outra vez, já não com o aspecto de viajantes que têm no exterior, mas com o de santos que se tornaram depois do martírio.

Mas em Santos-o-Velho, em Santos-o-Novo ou na capela dos Lencastres, o que impressiona é a capacidade de resistência de uma memória. Porque é que uma história se recusa a morrer? Como é que, dezassete séculos depois, eu posso perguntar ‘quem são os Santos?’ e ainda encontrar a resposta. Chamavam-se Veríssimo, Máxima e Júlia e quiseram morrer para afirmar a sua fé.

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