Menos tretas

1. Fui morar em Jerusalém há dez anos, Agosto de 2005. Nesse longínquo Verão, seria impensável todo o recente debate por Caetano Veloso & Gilberto Gil terem ido tocar a Israel. Não vou escrever sobre a decisão deles, apenas acentuar que não me lembro de um debate semelhante nas vezes anteriores em que ambos foram lá tocar. Até há bem pouco tempo (os bombardeamentos a Gaza de 2014?), o mainstream achava que boicotar Israel era uma ideia de extremistas. Continua a não ser mainstream, claro, mas só o facto de o concerto se ter tornado um caso mostra como o mainstream se deslocou, abrindo um espaço que não existia. Nunca o islão esteve tão refém de uma violência que destrói antes do mais os muçulmanos (a guerra na Síria, a guerra entre sunitas e xiitas no Iraque, a guerra do “Estado Islâmico” que engoliu parte da Síria e do Iraque), e nem isso impede que as tretas do governo israelita sejam mais evidentes do que nunca. Não tenho televisão, vejo vídeos específicos quando preciso, há dez anos acho que nem fazia ideia de quem era Jon Stewart, mas neste Verão da sua despedida televisiva, dez anos depois da retirada dos colonos de Gaza, um ano depois dos últimos bombardeamentos de Israel a Gaza, tiro-lhe o chapéu por ter passado todo este tempo a contribuir para que a parte centro-esquerda do mainstream identifique melhor as tretas, e portanto todo o espectro tenha sido mexido. A última tirada de Stewart no Daily Show foi contra esse seu, nosso, velho inimigo: Bullshit is everywhere. Um alerta que Stewart aplicou bastante ao Médio Oriente. E se o Médio Oriente tem uma vida muito mais difícil do que há dez anos, as tretas também.

2. Uma das tretas que ruiu nas últimas eleições israelitas foi a ideia de que o governo de Telavive aceita, deseja, muito menos está empenhado num estado palestiniano. Benjamin Netanyahu fez esse grande favor à poupança de tretas, depois de uma campanha sinceramente colonialista quanto aos territórios ocupados e sinceramente racista quanto aos árabes de Israel. Tornou-se mais difícil alguém assobiar para o ar, fingir que não sabe quem é o primeiro-ministro de Israel, e nem o governo americano, com toda a sua vocação para capitão do mundo, se dispôs a perder mais tempo naquele teatro. Obama focou John Kerry nas armas nucleares do Irão, que ao pé do conflito israelo-palestiniano eram um pedaço de bolo. E foram. Um dos momentos mais hilariantes de Stewart é nesse pós-eleições, mostrando excertos da campanha de Bibi antes e depois, e parodiando a reacção de Bibi por Obama ainda não lhe ter telefonado a dar os parabéns. Tipo, como assim não me ligaste a dar os parabéns pelo meu carro novo, aquele que usei para te atropelar??? Finalmente os republicanos tinham descoberto um conservador que podia derrotar Obama, com o ligeiro detalhe de não ser americano, mas América e Israel, vocês sabem, é uma história de amor.

3. Outra das tretas que Stewart desmontou nesse e outros episódios é justamente a ideia de que existe equilíbrio na forma como os comentadores americanos tratam o conflito, com a sempre apoplética Fox News à cabeça, inimiga de estimação. Tudo condensado, em plenos bombardamentos de 2014, a frase mais pronunciada era: Israel tem o direito de se defender dos terroristas do Hamas. Essa treta costuma trazer outra na manga, a que Stewart também se dedicou: a de que se trata de um conflito simétrico. No YouTube dá para achar facilmente aquele excerto do Daily Show em que os israelitas já podem descarregar um aplicativo com o alerta dos rockets do Hamas, quase sempre facilmente neutralizados, enquanto os palestinianos, como são eles avisados de que vem aí uma bomba que em três minutos destruirá a casa onde moram? Pois com uma pequena bomba, aquilo a que Stewart chama “amuse booooom”, antes de esbracejar na nossa direcção, em face do absurdo: “O mundo enlouqueceu? Alguém que nos salve??”

4. Stewart é sem dúvida um americano patriota, tão americano que acredita que os seus concidadãos podem ser melhores, mais esclarecidos, menos enganados e enganáveis. De que é possível, em suma, vencer as trevas das tretas. Talvez nenhum europeu, no fundo, no fundo, possa ser tão bem intencionado, porque sabe que os homens, no fundo, no fundo, não têm solução. Mas só a disposição de alguém como Stewart para a sobrevivência da espécie, no território onde o humor realmente é maior do que a vida, o absurdo, o absurdo.

Foto
LINDA EPSTEIN

5. No Verão de 2014, há aquele episódio em que Stewart está a tentar anunciar a ofensiva em Gaza e um monte de cabeças emergem a berrar em volta dele variantes da famosa frase Israel tem o direito de se defender!!!, até o derradeiro membro da equipa quase lhe cuspir o famoso insulto: Self hating jew! Hoje mesmo, o diário israelita Haaretz, que eu não visitava há séculos, tinha um artigo a acusar Stewart de ter contribuído para o declínio do jornalismo por misturar comédia e notícias. É um bom exemplo de treta. Mas, ao longo dos tempos, Stewart foi ouvindo insultos sinceramente desbragados, que não fingem o que não são, por exemplo o daquela activista judia de extrema-direita que o definiu como “o judeu mais nojento do planeta”. É aquele ponto em que o insulto contra o suposto anti-semita torce o rabo até à própria boca. Assim de repente, judeu mais nojento do planeta parece-me bastante anti-semita.

6. Na perspectiva de quem sistematicamente confunde judeus e Israel, estado e governo, qualquer judeu que critique decisões de Israel é um self hating jew. E a propósito desse, oh, tão agitado fantasma, o judeuzíssimo Stewart esclareceu numa entrevista: “Há muitas razões pelas quais me odeio — ser judeu não é uma delas. Portanto, quando alguém começa a lançar isso para o ar, ou a lançar que sou um pró-terrorista, é mais desapontador do que qualquer outra coisa. Há 16 anos que ganho a vida a criticar algumas políticas que acho que não são boas para a América. Isso não me faz anti-americano. E se faço o mesmo com Israel, isso não me faz anti-israelita.”

7. Um dos momentos em que criticar a política americana tocou no Médio Oriente foi o do famoso argumento das armas de destruição maciça, invocado para invadir o Iraque. Há um episódio do Daily Show em que Stewart arranja uma legenda a dizer Mess O’ Potamia (trocadilho que mistura caos e Mesopotâmia) e passa vários excertos de responsáveis ou comentadores ligados à administração Bush sobre as sementes da democracia que a América iria depositar no Médio Oriente. Stewart remata com um momento de singela educação sexual: “Isto acontece quando um país ama muito outro e deposita a sua semente democrática no crescente fértil do outro.”

8. Mas nada como aquela empreendedora expansão pela Cisjordânia, ninhos de pacíficos pioneiros judeus. “Os colona… Quero dizer, subúrbios! Subúrbios! Vá lá, Stewart, tu és capaz...”  Há dez anos, eu estava lá como correspondente deste jornal, e estava na cara que a retirada daqueles poucos milhares de colonos das suas casinhas de Gaza era estratégica, porque dava perdas, chatices, já não convinha, e para se avançar mais na construção de verdadeiras cidades judias na Cisjordânia. Mas o mainstream estava num ponto em que raro era o dia sem um leitor indignado com o meu anti-semitismo, a minha falta de coração, os pobres colonos arrancados das suas casas. De facto, arrancados como ervas daninhas, só que esperneando. Bullshit is everywhere. Hasta la vista, Jon.

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