Cinema Mágico

França tem 5600 salas de cinema e uma forte tradição cinematográfica. Já em Portugal menos de 5% dos espectadores foram ver filmes portugueses em 2014. Leonel Vieira, produtor e realizador do novo “O Pátio das Cantigas”, e Luís Urbano, produtor de “Mil e Uma Noites”, falam dos desafios de fazer chegar os filmes ao público português.

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Filmes Nacionais Produzidos (Ficção, Documentário, Animação)

Fonte: ICA

Filmes Estreados em Portugal (por Origem) 2014

Fonte: ICA

França criou o cinema. E não descansou ao sétimo dia

Nicolas Sarkozy é um homem apaixonado pela cultura. Marin Karmitz também não acreditaria se não o tivesse visto com os seus próprios olhos. “Há políticos que parecem incultos, como é o caso do anterior Presidente da República. Mas eu vi-o transformar-se totalmente e começar a apaixonar-se pela cultura. Sem fazer questão de que isso se soubesse. Continuaram a considerá-lo inculto, se bem que ele via um filme todas as noites. Filmes que percorrem a história do cinema. Isso vi eu. Constatei-o porque discuti filmes com ele.”

Em 2009, quando Karmitz aceitou o convite de Sarkozy para liderar o Conselho para a Criação Artística, com funções não muito diferentes de um ministro da Cultura, o meio do cinema francês declarou o seu horror. Como é que um homem da arte e da cultura aceitara associar-se a um poder político pouco preocupado com essas questões? Como é que um ex-maoísta virulento, que se opôs à guerra na Argélia e fez filmes proletários, cedera ao canto de sereia da direita reaccionária?

Este septuagenário é, como alguém já apontou, um paradoxo ambulante: um empresário rico que continua, nas suas próprias palavras, fiel aos ideais revolucionários do Maio de 68. É verdade que na origem do seu sucesso capitalista está a luta pelo controlo dos meios de produção: começou a produzir cinema na década de 60 para fazer os seus próprios filmes; no início dos anos 70, quando as salas de cinema censuravam os filmes militantes de Karmitz, ele resolveu comprar uma máquina de projecção e calcorrear a França; de seguida, alugou uma sala de cinema, no Quartier Latin, em Paris, mas não durou muito tempo. Os frequentadores da sala eram estritamente cinéfilos e Karmitz não estava interessado em pregar a convertidos – ele era um soixante-huitard, queria mudar o mundo. Em 1974 abriu uma sala de cinema na zona da Bastilha, um bairro popular, culturalmente desfavorecido. Foi o acto fundador do MK2, que é hoje o quarto grupo de cinema francês, facturando cerca de 55 milhões de euros por ano.

“No início não sabia nada sobre salas de cinema. Tal como não sabia nada sobre produção, nada sobre distribuição. Aprendi tudo. Mas dediquei-me a sério”, diz.

O centro de operações do MK2 tem um ar discreto: um prédio voltado para um pátio, sem chamar as atenções sobre si, numa rua de sentido único na zona da Bastilha. Na parede, junto à recepção, três posters. Karmitz podia ter escolhido impressionar quem chega pendurando ali uma parte da sua história impressionante – ao longo da sua carreira, produziu cineastas como Godard, Resnais, Chabrol, Kieslowski, Gus van Sant, só para mencionar alguns – ou do catálogo excepcional de 500 filmes da MK2 – Chaplin, Truffaut, Bresson. Mas os posters são todos recentes, contemporâneos: God Help The Girl, um filme musical de Stuart Murdoch, da banda indie Belle & Sebastian, Mommy, do jovem canadiano Xavier Dolan, e Cinema Paradiso, um mini-festival de “food, cinema e clubbing” que o MK2 organizou em Junho no Grand Palais, com filmes de culto e de grande público (The Big Lebowski, Top Gun, Kill Bill, Titanic, “e muitos outros...”). Se isto importa, é porque é um sinal de modernização, de sintonia com as novas gerações, da parte de alguém que sempre se recusou sentar-se à sombra da sua própria história.

O escritório de Marin Karmitz fica no segundo andar. No corredor há uma série de fotografias de Abbas Kiarostami, o cineasta iraniano que Karmitz continua a produzir (“Vamos fazer um filme na China”), coisa que já parece reservar apenas para casos especiais. Marin Karmitz é um amante e coleccionador de fotografia. No seu escritório tem Jorge Molder – um auto-retrato do artista, de fisionomia kafkiana –, Christian Boltanski, uma série de retratos de mulheres que Chris Marker fez no metro de Paris, nas suas viagens para o hospital pouco antes de morrer.

Marin Karmitz continua a falar ao fim de duas horas como se não tivesse pressa. Elogia Portugal, país que diz admirar pelo menos desde 1974, quando como tantos outros veio para cá ser espectador da revolução. Não é um admirador longínquo: conhece os actuais presidentes da Câmara do Porto e Lisboa, de quem tem as melhores impressões. O que sugere que, depois de ter entrado no negócio das salas de cinema em Espanha, no ano passado, a MK2 poderá estar com os olhos postos em Portugal.

Marin Karmitz passou a pilotagem da MK2 ao seu filho mais velho, Nathanael, em 2005, mas as notícias sobre a sua suposta retirada de cena foram prematuras. Nathanael é o administrador do grupo, mas Marin, 76 anos, preside ao conselho de vigilância. “O conselho de administração é operacional, o conselho de vigilância são os sábios”, diz Marin com um sorriso, atestando o seu ascendente sobre o grupo que fundou com as iniciais do seu nome.

Para um homem que ganhou a reputação de difícil, Marin Karmitz não podia ser mais atencioso e bom anfitrião. O filho, Nathanael, 37, é bem mais impaciente, como se tivesse mais que fazer. Falta Elisha, o herdeiro mais novo, responsável pela estratégia de marketing e multimédia do grupo.  

A MK2 é a prova de que a cinefilia pode ser rentável – desde que acompanhada de uma forte intuição e de uma queda para o negócio. Com 11 recintos e 65 salas, é o terceiro maior exibidor em Paris. Algumas das suas salas mostram o cinema mais exigente: recentemente, numa semana de Julho, o MK2 Beaubourg, ao lado do Centre Pompidou, tinha em cartaz o primeiro dos três volumes das Mil e Uma Noites de Miguel Gomes (sala cheia numa sexta-feira à tarde), um raro filme americano dos anos 70, Wanda, de Barbara Loden, e um clássico filme de artes marciais de Hong Kong, A Touch of Zen (1971), de King Hu.

“O problema actual, na minha opinião, é a falta de respeito em relação aos espectadores. Mostram-lhes filmes frequentemente medíocres, muitas vezes provenientes dos Estados Unidos. São tratados como se fossem carros. Há salas que não têm outra relação com os espectadores a não ser: mostramos uma coisa, você paga, adeus”, diz Marin Karmitz.

O cinema em França, como em todos os países, teve os seus momentos de crise. Entre a década de 80 e o início dos anos 90, muitas salas fecharam nos centros das cidades. A frequência de cinemas teve o seu ponto mais baixo em 1992. Surgiu um novo tipo de recinto, o multiplex, que se multiplicou nas zonas suburbanas.

“Um cinema é o coração da cidade. O coração animado da cidade. O que se passou em França? Houve a moda dos multiplexes, e houve multiplexes que se construíram na periferia. Muito frequentemente os cinemas da cidade entraram em declínio e desapareceram. E quando desapareceram, o que desapareceu ao mesmo tempo? Os restaurantes, os parques de estacionamento, toda a vida do bairro, a animação nocturna, a segurança do bairro. O cinema estava aberto aos fins-de-semana e à noite. Era um sítio onde as pessoas podiam perder um pouco a sua angústia.”

Revelando uma audácia excepcional, Marin Karmitz instalou as suas salas em bairros abandonados pela cultura. “Abri seis salas no pior bairro de Paris, o 19º. O bairro da droga, onde a partir das oito da noite as pessoas não saíam à rua porque tinham medo. Tudo estava à venda, tudo estava em decadência, as lojas tinham fechado. Uma catástrofe. E era um dos bairros mais bonitos de Paris porque era o prolongamento do Canal Saint Martin. Abri as seis num dos cais desse canal. Levei dez anos para abrir outras seis salas do outro lado do canal. Há um barco que atravessa e que leva espectadores de uma sala a outra ou de um lado ao outro do canal. Fizemos um trabalho enorme para envolver o bairro. Eliminámos a droga, coisa que a polícia não conseguiu fazer. Hoje temos 1,2 milhões de espectadores por ano num bairro onde não havia salas de cinema.”

A MK2 fez o mesmo noutra zona do leste de Paris, aparentemente pouco propícia à exploração cinematográfica: o bairro da Biblioteca Nacional de França, que, como Marin Karmitz nota, era “um bairro que não existia há dez anos” porque ainda “estava em construção”.

Mas Karmitz viu potencial nesses locais: eram zonas bem servidas em termos de rede de transportes públicos e estavam prestes a sofrer uma profunda mutação urbana e social, com a chegada de novas populações, endinheiradas e jovens. O apoio do poder político foi crucial nessa estratégia: a Câmara de Paris criou condições favoráveis, facilitando a instalação dos cinemas MK2 a custo baixo. Fosse o seu ocupante de esquerda ou de direita – Karmitz abriu salas com uns e com outros, o que reforça o seu espírito independente. Foi um encontro de vontades: a MK2 queria ampliar o seu parque de cinemas e atrair um novo público, a autarquia queria dinamizar a paisagem. Aí está, o cinema enquanto projecto urbanista.

“As salas são um lugar público. O que é que isso quer dizer? Não se pode reflectir sobre este trabalho que é exibir cinema, se não tivermos em conta o que é a cidade, o bairro, os seus habitantes”, resume Marin Karmitz.

“É preciso pensar em termos de coesão social e sobre o papel que o cinema tem nessa coesão social.”

Robin dos Bosques

A MK2 é um caso de sucesso singular que talvez só pudesse ter acontecido em França, país que inventou o cinema há 120 anos. “O facto de o cinema ter nascido em França, inventado pelos irmãos Lumière, faz com que houvesse sempre em França um olhar e uma atenção particulares ao cinema. É uma questão de tradição histórica”, diz Xavier Lardoux, director do Centre National du Cinéma (CNC), o organismo público que arbitra e financia o sector do cinema francês, papel que em Portugal cabe ao Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA).

Xavier Lardoux descreve um sistema francês virtuoso, como seria de esperar de alguém no seu cargo, mas a verdade é que todos os interlocutores em Paris confirmam. Em 2014, o orçamento do CNC para o cinema foi de 772,7 milhões de euros (por comparação, o do ICA foi de 14,7 milhões). Diferenças de escala à parte, a verdade é que o CNC dispõe de muito mais fontes de financiamento do que o ICA. O princípio é simples: todos os que beneficiam da difusão de obras cinematográficas ou audiovisuais devem contribuir para a criação e produção dessas obras, com uma percentagem proporcional ao seu volume de negócios. Na prática isso quer dizer que salas de cinema, televisões, operadoras de telecomunicações e de Internet pagam taxas ao CNC, que por sua vez investe esse dinheiro na produção nacional.

A criação do CNC em 1946 foi uma reacção ao susto provocado pelo acordo franco-americano que negociou o perdão da dívida francesa em troca do quase abandono de quotas de importação dos filmes americanos. Em menos de um ano, o cinema francês afundou completamente. Por mais que o sistema francês tenha surgido como um contrapoder ao cinema americano, a sua lógica de actuação não é atacar os Estados Unidos. Pouco depois de criarem o CNC, os franceses estabeleceram a Taxa Especial Adicional, ou TSA: todas as vezes que alguém compra um bilhete de cinema, uma percentagem desse valor –  que actualmente corresponde a 10,72% – destina-se aos fundos do CNC. Essa taxa, que é paga por qualquer filme, e em particular pelos filmes americanos porque são maioritários, irá beneficiar exclusivamente o cinema francês. “O que é muito inteligente é que quanto mais sucesso um filme americano tiver em França, mais dinheiro o CNC irá receber”, nota Xavier Lardoux. É uma atitude meio Robin dos Bosques: proteger os mais frágeis, estipulando uma redistribuição financeira em que os maiores sucessos de bilheteira financiam um cinema completamente oposto.

A taxa paga pelas televisões e distribuidores de serviços de televisão representa mais de dois terços do fundo do CNC. “Para ter a certeza que elas investem a sério no cinema, criámos obrigações de investimento. Hoje as cadeias de televisão gostariam que as obrigações fossem menos elevadas. Felizmente para o cinema, a lei obriga-as a investir. Elas não têm escolha”, diz Xavier Lardoux.

O Canal Plus entrega 12,5% das suas receitas anuais ao CNC. É o canal de televisão que mais dinheiro investe no cinema em França, o que até ao ano passado representava 30% do financiamento total. Ser um actor tão decisivo na economia do cinema francês – e europeu – é uma condição que faz parte do caderno de encargos deste canal temático de cinema e desporto, desde que foi fundado em 1984. “A contrapartida de ter acesso a todo o território nacional foi fazer com que o Canal Plus tivesse um papel importante no financiamento do cinema”, diz Nathalie Coste Cerdan. Afável e animada, a directora de cinema do Canal Plus recebe-nos entre a assinatura de dois acordos muito importantes. Um colega bate à porta e exibe as garrafas de champanhe dentro de um saco. O brinde fica para mais tarde. A imprensa francesa revelará mais tarde que a Vivendi, o grupo a que pertence o Canal Plus, se tornara o maior accionista da Telecom Italia.

Com os seus dez milhões de assinantes, o Canal Plus chegou a “um período em que não é mais um canal em crescimento, há uma estagnação” e, por isso, as discussões com o sector do cinema “são mais difíceis do que eram há 20 anos”, admite Nathalie Coste Cerdan. Mas, mesmo hoje, o cinema continua a ser a principal motivação para os assinantes do canal. “Mais do que o desporto, as séries...” Por outro lado, os recursos do cinema estão ligados aos lucros do canal. “Se o Canal Plus estiver bem, o cinema estará bem.”

Na hora de procurar parceiros financeiros para um novo filme, o Canal Plus é sempre a primeira porta a que os produtores vão bater, depois de assegurar um distribuidor. Ao contrário das televisões hertzianas, que aceitam co-produzir um filme com vista a receber uma parte das suas receitas, a intervenção do Canal Plus na pré-compra de filmes não tem uma contrapartida financeira. A sua única vantagem é ter a exclusividade do filme em televisão – serem os primeiros e os únicos a exibi-lo durante um longo período. “Portanto, os produtores adoram-nos”, resume Nathalie Coste Cerdan. “Porque nos vêem como dinheiro que não é caro.”

O Estado teve um papel regulador nesse domínio: se o Canal Plus não tem contrapartidas financeiras pelo seu investimento no cinema é porque houve receio de que se tornasse um monopólio, esmagando toda a concorrência. “Teríamos forçosamente todos os grandes sucessos porque vemos os argumentos antes de toda a gente”, explica Nathalie Coste Cerdan. “Então decidiu-se: o Canal Plus não faz co-produção, vocês ficam pela pré-compra.”

O cinema representa 40% da programação do Canal Plus e, nalguns dos canais derivados, até mais. “Não compramos filmes só para maximizar as audiências, como fazem as televisões privadas. Para nós, não são só as audiências que contam, o consumo efectivo; também há a satisfação. Os assinantes do Canal Plus são um pouco a França em modelo reduzido: temos categorias sociais não muito favorecidas, a classe média, quadros profissionais – enfim, toda a gente. Portanto, é preciso ter um cinema muito diversificado para todas as categorias da população. É preciso agradar a pessoas que gostam de cinema de terror. É preciso agradar a famílias. Temos todo um cinema de autor muito exigente. Investimos à volta de 220 milhões de euros por ano no cinema francês e europeu. E a repartição desse dinheiro deve respeitar uma diversidade de tipos de orçamento: grandes produções, médias, pequenas. Tem de incluir vários primeiros filmes. Tem de contemplar produtores e distribuidores diferentes. Tudo isso faz parte do nosso caderno de encargos.”

O que se nota, desde logo, na postura desta responsável do Canal Plus, e que a diferencia do discurso das televisões portuguesas, por exemplo, é que não se questiona o modelo de financiamento do cinema. O Canal Plus não põe em causa o facto de dar 12,5% dos seus lucros ao cinema quando outras televisões só dão 3%. “Para nós é um elemento de marketing, de diferenciação. É a nossa maneira de ser diferente. Também somos a televisão do cinema francês por excelência, o que nos distingue de outros actores internacionais como o Netflix. É uma vantagem competitiva.”

Quando se olha para a Europa, é verdade que a França é uma espécie de excepção na paisagem cinematográfica, diz Nathalie Coste Cerdan. Um sistema que é invejado porque associa resultados positivos, tanto no plano económico como no plano artístico. O sucesso comercial e o cinema de autor coexistem. A indústria e a arte coexistem. Grandes e pequenos coexistem.

“É um sistema que é muito regulamentado e baseado em relações entre actores que têm todos interesse em fazer com que esse sector seja economicamente forte. Claro que há confrontos, nem todos estão de acordo quanto à partilha do bolo, há visões diferentes do cinema. Mas, no fim de contas, todos têm orgulho, todos defendem esta especificidade – de dizer: sim, a cultura é uma coisa à parte, não é um produto como os outros.”

Viva a diferença

Com 404 ecrãs, Paris é a cidade do mundo com mais salas de cinema, o que inclui o multiplex da UGC no centro comercial Les Halles, com uma frequência anual de três milhões de espectadores, e o Cinéma du Panthéon, com a sua sala única, no quarteirão da Sorbonne, que é onde mais se tropeça em salas de cinema por metro quadrado. Basta caminhar alguns metros para poder escolher entre um filme de Godard, uma cópia digitalmente restaurada de Rocco e Seus Irmãos, de Visconti, As Mil e Uma Noites de Miguel Gomes (que estreou em França antes de chegar a Portugal). Em Paris é difícil dizer que não há nada no cinema para ver.

“Se ainda há salas de cinema no bairro é porque a Câmara de Paris criou regras para impedir que as salas fossem transformadas em espaços comerciais. Muitas salas fecharam. Mas as que restam souberam transformar-se. E, nos últimos anos, há salas a abrir. Aqui ao lado, há uma sala que fechou e reabriu. Queriam fazer outras coisas, mas foram obrigados a manter uma sala de cinema.”

Thomas Rosso é responsável pela distribuição e edições vídeo da Why Not Productions, a produtora de cineastas franceses como Arnaud Desplechin ou o último vencedor da Palma de Ouro em Cannes, Jacques Audiard. O troféu pode, aliás, ser admirado no amplo e confortável salão de chá do Cinéma du Panthéon, 150 metros quadrados de bom gosto decorados por Catherine Deneuve. Com toda a subtileza: não há nenhuma placa a assinalar “Decorado por Catherine Deneuve”.

Em 2001, a Why Not comprou a sala de cinema mais antiga de Paris, que estava moribunda. Thomas Rosso entrou logo a seguir, para tentar tornar a sala num lugar vivo. “Era ele que fazia as projecções, fazia tudo. Foi um trabalho militante”, nota Maïla Doukouré, a actual directora do Cinéma du Panthéon. Pascal Caucheteux, patrão da Why Not, decidiu adquirir a sua própria sala para mostrar e defender os filmes da casa. “Penso que da parte dele foi verdadeiramente uma reacção. Para ele, passar imenso tempo a fazer um filme e depois esse filme estar duas semanas em sala era insuportável”, diz Maïla Doukouré.

O último filme de Arnaud Desplechin, Trois Souvenirs de Ma Jeunesse, uma produção Why Not, está em cartaz desde Maio. Na semana seguinte, o Cinéma du Panthéon planeava exibi-lo numa versão legendada em inglês, a pensar nos turistas. “Vir ao cinema em Paris é uma actividade turística”, ri-se Thomas.

“Temos os filmes em sala durante muito tempo. Até porque as outras salas deixam de exibi-los e as pessoas têm de vir aqui vê-los”, diz Maïla. “Se não tivéssemos a nossa própria sala, o filme de Desplechin já teria desaparecido”, nota ele.

Salas ditas “de arte e ensaio”, como o Cinéma du Panthéon, recebem financiamento do CNC baseado em critérios de qualidade artística e não critérios quantitativos. “Nós corremos riscos por vezes – ou mesmo o tempo todo, diria eu – com a nossa programação e o CNC é sensível é isso”, diz Maïla. Trinta por cento dos apoios do CNC são para a exibição – em Portugal, esse valor não chega a 2 % do orçamento do ICA.

Thomas: “Não são só as ajudas financeiras. O papel de regulação é muito importante. É também gerir os conflitos, gerir a concorrência, evitar que um actor muito poderoso esmague os outros ou crie novas regras que vão estilhaçar o mercado. Isso é crucial e, a longo prazo, quase mais importante do que as ajudas pontuais.”

Há uma dúzia de anos, grandes grupos como a UGC e a Gaumont criaram o passe ilimitado, que permite aos seus utilizadores frequentarem as suas salas de cinema quantas vezes desejarem mediante o pagamento de um valor mensal. “É um sistema que, se fosse gerido só pelos próprios circuitos comerciais, sem regulação, teria matado os cinemas de arte e ensaio. Porque as pessoas só pagariam mais para ir a outros sítios. Mas o Estado obrigou os circuitos a incluir todas as outras salas e a dividir as receitas”, explica Thomas.

“Não é completamente equitativo”, sublinha Maïla.

“Nem será alguma vez”, diz Thomas.

Maïla: “São grandes grupos que sabem muito bem o que fazem e que tentam que o sistema lhes seja vantajoso. As salas de arte e ensaio continuam a bater-se porque a verdade é que quando alguém vem aqui com um passe UGC nós ganhamos muito pouco dinheiro, nem chega a um euro, sendo que quando as pessoas pagam bilhete ganhamos cinco euros pelo menos. Não é perfeito, mas ao menos faz com que o público circule.”

Thomas: “A questão é que não tivemos escolha. Fomos obrigados a aceitar essa carta senão teríamos desaparecido. Mas só o facto de termos podido negociar é uma grande oportunidade e foi o CNC que impôs a negociação. O princípio da carta ilimitada é interessante mas tudo depende de como cada um é remunerado. Os multiplexes podem dar lugares gratuitamente para que as pessoas venham comprar pipocas. Mas o resto da indústria não pode viver assim.”

O CNC protege cinemas como o Panthéon, “permite uma igualdade face à violência dos mercados e da economia”, diz Maïla. Que pergunta a Thomas se ele acha que nos grandes grupos comerciais também se encara o sistema de uma forma positiva. “Penso que sim, apesar de tudo. Por mais que gostassem de pagar menos taxas e ficar com tudo com eles, toda a gente tem consciência de que é um sistema virtuoso.”

Mesmo a UGC?

“Penso que sim.”

E a MK2, que exibe cinema de autor nos seus multiplexes?

“Como acontece na extrema-esquerda, o inimigo é o que está mais perto”, ri-se Thomas Rosso. “Marin Karmitz abriu salas em bairros parisienses que eram desertos – o que é uma demonstração do seu voluntarismo, mas também são bairros que se gentrificaram, que se aburguesaram. As suas salas de cinema, nomeadamente a MK2 Bibliothèque, tornaram-se uma espécie de concept store. Ao mesmo tempo, abrem salas efémeras no Grand Palais durante o Verão, e têm salas de cinema privadas, para alugar a empresas e grupos. Na MK2 experimentam imensas coisas. Digamos que numa época experimentaram mais num nível político e agora experimentam num nível conceptual hype. Talvez seja a evolução natural de uma empresa que teve sucesso. A diferença entre a MK2 Bibliothèque e esta sala? Quando lançamos um filme como Timbuktu, que fez um milhão de espectadores, não podemos estreá-lo só em salas como a nossa, se quisermos que ele faça todos esses espectadores. É preciso salas como a MK2 ou a UGC. Toda a gente beneficia das experiências uns do outros. Tanto melhor se não formos todos iguais.”

Marin e Nathanael Karmitz
Thomas Rosso e Maïla Doukouré