Médicos acusam ministério de “meter litro e meio de água onde só cabe um litro”

Federação Nacional dos Médicos acusa Ministério da Saúde de sobrecarregar os profissionais e diz que, desde 2011, pelo menos 3000 médicos já deixaram o serviço público.

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A falta de aposta nos cuidados primários é uma das principais críticas da Fnam Nelson Garrido

Um jarro foi a imagem escolhida pela Federação Nacional dos Médicos (Fnam) para ilustrar o que considera ser a actuação do Ministério da Saúde. Para a estrutura sindical, a tutela tem tentando “meter litro e meio de água num jarro onde só cabe um litro” – numa referência ao facto de os médicos terem de atender cada vez mais doentes e com menos meios. Do jarro a alegoria passou para o jardim, com a Fnam a prometer “desmistificar o que parecem ser tudo rosas num ministério onde realmente predominam espinhos”. Como exemplo, avançaram que, desde 2011, mais de 3000 médicos já deixaram o Serviço Nacional de Saúde (SNS).

A posição da Fnam foi transmitida aos jornalistas numa conferência de imprensa que decorreu nesta quarta-feira, em Lisboa, depois de ter sido dado como concluído o processo negocial entre os sindicatos médicos e o Ministério da Saúde. O entendimento permitiu chegar a um consenso sobre alguns temas relacionados com a contratação de médicos e o direito ao descanso, mas a presidente da Fnam, Maria Merlinde Madureira, destacou antes que, dos 26 temas que estavam em cima da mesa, só dez culminaram em acordo, para sete houve mesmo desacordo e outros nove foram abandonados.

“Isto dá, em percentagem, 38% de acordo, 27% em desacordo e não discutido de 35%. É grave porque eram questões importantes e estruturantes que não discutimos por recusa do Ministério da Saúde”, afirmou Merlinde Madureira, que acusa a tutela de “falta de liderança” na forma como conduz a política de saúde no país. Uma política que a Fnam considera estar a “destruir” o SNS, ao mesmo tempo que tanto o sector privado como o sector social crescem.

Um dos temas centrais da conferência passou pelos cuidados de saúde primários. A Fnam apelida as condições em que muitos profissionais trabalham como “indignas” e rejeita o aumento da lista de doentes de cada médico de família, proposto pela tutela, para resolver o facto de 1,2 milhões de pessoas continuarem sem médico de família – um tema que Paulo Macedo tinha prometido resolver até ao final da legislatura. Em 2012, os sindicatos aceitaram uma subida temporária de 1500 para 1900 utentes e, agora, o Ministério da Saúde quer dar um incentivo financeiro aos clínicos que, nas zonas carenciadas, aceitem subir as listas até 2500 utentes. “Com este aumento das listas o que se pretende é dar muitos mais doentes a cada médico”, afirmou Merlinde Madureira, que alertou que a qualidade do atendimento vai piorar e os doentes vão ter mais dificuldade em fazer marcações de consulta.

A sindicalista acusa o ministério e Paulo Macedo de terem “abandonado” a reforma dos cuidados de saúde primários, que passava por transformar os antigos centros de saúde nas novas unidades de saúde familiar. Só com esta medida, assegura a Fnam, era possível cobrir uma maior fatia da população com médico de família. A este propósito, a médica criticou a “perda de poder salarial” que a classe sofreu nos últimos anos e que considera “afastar os profissionais dos serviços públicos”. Só desde 2011, a federação estima que mais de três mil médicos tenham abandonado o SNS, alertando que muitos casos foram de reformas antecipadas por os clínicos não aguentarem já o clima de trabalho.

Também Henrique Botelho, outro dos dirigentes da Fnam presentes na conferência, desafiou a Direcção-Geral da Saúde a avaliar o impacto na qualidade que a subida de listas de utentes teria. “Não se mete litro e meio de água num jarro onde só cabe um litro”, ilustrou, acusando Paulo Macedo de perseguir “objectivos levianamente fixados” que “não foi competente e capaz” de implementar. “Passados quatro anos é possível dizer com segurança e justiça que o objectivo foi levianamente fixado e incompetentemente conduzido”, insistiu. Depois, o médico lembrou que as negociações com os sindicatos começaram a 14 de Outubro e que só no final de Julho foram concluídas e disse que o ministro da Saúde apenas esteve presente na assinatura da acta final – o que considera mostrar a reduzida importância dada ao processo.

Mário Jorge Neves, também na Fnam, classificou o actual estado do SNS e da política de saúde como uma “situação de descalabro” e reiterou que Paulo Macedo está a fazer uma “desnatação dos serviços públicos de saúde”, promovendo o êxodo dos profissionais para o sector privado, para reformas antecipadas e para a emigração. “Nem no período da Guerra Colonial houve tantos médicos a saírem para outros países”, afirmou. “Os cortes não são cegos, são cirurgicamente dirigidos”, acrescentou o médico, que defende que só no futuro ficaremos a conhecer totalmente os "efeitos negativos" das medidas tomadas pelo actual executivo.

Houve vários temas criticados pela Fnam, nomeadamente a passagem dos hospitais para as Misericórdias, que consideram uma “entrega e não uma devolução”, assim como a forma “pouco transparente” como consideram que decorrem a nomeação de gestores para as administrações regionais de saúde e agrupamentos de centros de saúde. Outra das preocupações passa pela alteração das regras do internato médico, com a federação a temer que a redução de parte da formação tenha impacto na qualidade final dos novos médicos.

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