A ajuda a depender dos céus

Incêndio que irrompeu sábado em Cerveira chegou a mobilizar ontem mais de 400 operacionais, quatro meios aéreos e o empenho da população civil. Mas as labaredas progrediram para Caminha, e tinham Viana do Castelo no horizonte. Ninguém descansa. Muito menos os padres.

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Fotos Paulo Pimenta
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As calças de fato de treino pretas e a camisola da mesma cor, por debaixo de um colecte reflector, sapatos desportivos e olhos a denunciarem uma noite mal dormidas. Não, não seria esta a indumentária que o denunciaria como pároco da freguesia de Covas, concelho de Vila Nova de Cerveira, mas é isso que Carlos Castro faz no dia-a-dia: conduz almas para longe do inferno. Pensando bem, era exactamente o que ele esteve a fazer durante toda a noite e todo o dia desta segunda-feira, a ajudar no que podia a evitar que o manto de preto e de cinzas, precedido pelas labaredas e insuportável calor (não dizem que é o inferno, isto?) chegasse às casas dos seus paroquianos. Não precisa de cabeção e batina para lhe ver reconhecida autoridade, que ela era tão imediata quanto a que toda a gente dava à dupla de militares da GNR que estava à entrada da serra, a impedir o trânsito.

Os militares mandavam dar meia volta, não havia quem subisse até à serra de Arga pelo lado de Covas. E o Padre Carlos lá estava, para dizer que fulano é membro da Junta, que cicrano só vai lá acima para levar um final para ajudar a atestar um depósito, que beltrano tem de passar porque trabalha numa empresa que tem mangueiras que serão fundamentais para ajudar ao combate. ”Temos todos de ajudar”, dizia, enquanto calçava umas luvas porque “era preciso ir passar mangueiras de um carro para o outro”. “Os que estão de passagem, ou vêm só para ver, têm de dar meia volta”, dizia o padre Carlos referindo-se aos mirones – que também os há, os que são como São Tomé e querem ver para acreditar que sim, que a serra antes verdejante estava coberta por um manto de negro pesado. Esses têm muitos miradouros para o conseguir perceber que isto esteve feio. Muito feio. Agora só não queremos que piore”, termina o padre.

Os mirones tinham, de facto, muito para ver.  Bastava descer a estrada até Covas. Desde sábado às 11h00 da manhã que montes e vales eram pasto de chamas, semeando destruição por onde passam. O nome de Covas diz tudo. A freguesia fica numa cova funda, num confluir de vales com escarpas bem pronunciadas. Escapou incólume ao manto negro que se abateu à sua volta graças à intervenção técnica dos bombeiros, que fizeram um contrafogo para evitar que as chamas chegassem à freguesia. “A decisão foi tomada às quatro da manhã”, conta Rui Esteves, presidente da Junta de Covas, também ele a denunciar falta de descanso desde a manhã de sábado. “Todos somos poucos, mas, quando coordenados, conseguimos fazer muito”, diz o autarca. A freguesia de Covas foi a primeira no país a montar uma Unidade Local de Intervenção que, constituída por 18 voluntários e três veículos (um Unimog com cisternas de três mil litros, e dois todo o terrenos com mil litros cada) que estão sempre disponíveis, entre Maio e finais de Setembro, para fazer vigilância e prevenção a incêndios. Foi criada em 2000, e há já cinco anos que não tinha uma intervenção  relevante. Até este ano.

O contrafogo foi eficaz, mas ninguém arredava pé dos principais acessos à freguesia, “que o vento muda de repente, e fica tudo estragado”, diz Pedro Brandão, um jovem de 20 anos e um dos mais novos elementos desta Unidade Local de Intervenção. Foi a primeira vez que ajudou no combate a um incêndio, recebeu formação, sente-se preparado. Mas, admite, são muitas horas. É muito cansaço.  O segredo – e a obrigação – é a de confiar em quem está a coordenar as operações, e acatar todas as decisões que são emanadas do centro de comando.

A Unidade Local de Intervenção, recebe apoio de técnicos privados da EFI Comercial e da Eurochemicals, empresas que se dedicam à resinagem e que enviaram para as frentes de incêndio os seus operacionais, habituados às actuações de prevenção e rescaldo. “O nosso trabalho está nos montes e na floresta. Se o incêndio der cabo dela não temos meios de subsistência”, explica Jorge Brito, um dos responsáveis de uma das empresas, com sede em Ponte de Lima. Todos estes operacionais (podemos chamá-los assim, mesmo  que pertençam à sociedade civil) se coordenam com os membros da Força Especial de Bombeiros, que recebe orientações directamente do Posto Operacional de Comandos que, ontem ao fim da manhã, já se havia instalado no município vizinho de Caminha, no altaneiro edifício da Junta de Freguesia de Agra de São João.

A aldeia está a salvo, o Mosteiro ainda não

Quem está aos comandos é quem tem a visão mais alargada de tudo o que se está passar. E isso, às vezes, em vez de facilitar, complica. Que o diga o presidente da Câmara de Caminha, Miguel Alves, que não raras vezes esteve dentro do camião que serve de posto de operações, a ouvir os relatos da situação e a assistir às tomadas de decisão. O Posto Comando é, necessariamente, colocado no local onde haja melhor amplitude de visionamento sobre as frentes activas. E uma das duas frentes que este incêndio mantinha activas, estava a progredir, perigosamente, à vista de todos. Os esforços do comando estiveram todos concentrados em salvar o lugar de Castanheira, uma povoação onde vivem  cerca de 50 habitantes, e das quais quatro habitações estiveram em perigo.  Os poucos residentes que se encontravam nas casas mais próximas do fogo foram reposicionadas para lugares mais altos da freguesia à hora de almoço, num esforço de prevenção para o caso de os esforços para evitar que a frente de fogo subisse a encosta em direcção à aldeia saíssem infrutíferos. E saíram. O contrafogo foi ludibriado por uma mudança de vento, a encosta foi rapidamente devorada pelas chamas, as labaredas chegaram a aproximar-se perigosamente das casas. Mas, quatro horas depois, já se podia dizer que a povoação de Castanheira não corria mais risco. A preocupação, agora, é com a própria freguesia de Agra São João, e o mosteiro de São João D’Arga, monumento nacional, que se encontra nas imediações. “As coisas mudam de repente. À hora de almoço estava tudo calmo. As quatro da tarde estava tudo virado do avesso. De repente tudo muda”, dizia a meio da tarde, afirmando estar muito preocupado com o que viria a seguir. “A aldeia esta a salvo. O mosteiro ainda não”, admite.

Às 17h30, a preocupação do comandante Elísio Oliveira era reposicionar todos os meios operacionais. Tinha a frente de Argela – Vilar de Mouros controlada. A de Castanheira, salva que estava a aldeia, sobretudo graças à intervenção dos meios aéreos, grassava ainda, encosta acima, rumo a São João de Arga. A orografia do terreno, o vento, as linhas de água estavam a impedir o sucesso da operação. “A situação é muito complicada. Estamos a fazer a gestão dos meios possível”, dizia o comandante. O reposicionamento passou por enviar duas colunas de militares para a zona de vigilância e consolidação (fase de pré-rescaldo) para libertar os bombeiros para a frente de combate. E esperar que o reforço dos meios aéreos (tinham sido pedidos mais dois aviões bombardeiros médios) pudessem fazer progredir o combate. A ajuda a depender dos céus. O padre Carlos Castro continuava na outra ponta do incêndio a tentar interceder junto dele.

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