Um sorriso pode ajudar a identificar um morto

A fotografia de alguém a rir pode ajudar a identificar um cadáver. Mais do que uma foto do tipo passe. Já as selfies, não são de grande utilidade. E quem acha que é sempre possível tirar teimas com uma recolha de ADN está enganado. Falámos com homens e mulheres que descobrem identidades.

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Um coveiro revolve o terreno para o preparar para mais um enterro e depara-se com um corpo enrolado em plástico. Não há caixão. Apenas um corpo pequeno, deitado de lado. Uma vez no gabinete médico-legal perceber-se-á que o cadáver está mumificado. E que pertence a uma criança do sexo masculino, que teria dois anos quando morreu. Assim começou um caso que intrigou alguns dos elementos do Laboratório de Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária. Daquele corpo enterrado havia mais de 45 anos, cuja identidade era desconhecida, parecia impossível, pelo estado em que estava, recolher-se sequer uma simples impressão digital.

Noémia e Jorge Calarrão, peritos em impressões digitais, são marido e mulher. Ele trabalha na Judiciária desde o final dos anos 70. Ela — que ajudou na identificação de vítimas do tsunami de 2004 no sudeste asiático  —, desde os anos 80. Reconhecem que muitas vezes os casos mais difíceis, por muito pouco românticos que possam parecer, os acompanham nas conversas até casa, depois de terminado o dia de trabalho na sede do LPC, em Lisboa. O corpo mumificado, encontrado em Março de 2013, foi um verdadeiro desafio.

No computador de uma das salas do LPC, Jorge Calarrão mostra-nos as fotografias feitas então: parecia feito de barro. A pedido do gabinete médico-legal da Covilhã, o casal de peritos pôs-se a caminho para ajudar a resolver o mistério. Como o cadáver estava, “já não era possível, por exemplo, hidratar os dedos para ‘reavivar’ as cristas”, explica Noémia — as cristas são a parte mais saliente que vemos na pele na ponta dos dedos, os sulcos são o espaço entre as cristas e é tudo isto que compõe uma impressão digital quando pintamos os dedos com tinta e os calcamos, ainda frescos, numa folha. Mas daqueles dedos desidratados não se conseguia retirar qualquer imagem usando este método simples.

“Com muita paciência”, e depois de muitas horas de trabalho à volta dos dedos do cadáver, Jorge e Noémia conseguiram fazer um molde de cada um — uma pasta cinzenta, que parece plasticina, da qual é posteriormente feita uma fotografia tridimensional... Acabou por resultar. Estavam recolhidas as impressões digitais — o elemento que constitui o mais rápido e o mais barato recurso para identificar um corpo, como nota Carlos Farinha, director do LPC. Mas que nem sempre é possível obter, ou que nem sempre é útil nesta coisa da identificação humana, como vamos ver em breve.

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Jorge Calarrão é especialista em impressões digitais no Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária Enric Vives-Rubio

Para já, de bata e luvas brancas, Noémia Calarrão mostra-nos alguns dos instrumentos que fazem parte da sua mala de trabalho, quando é chamada a uma morgue: uma espécie de pinça, “para quando é preciso mergulhar os dedos dos cadáveres em água quente”; outra, para endireitá-los de forma a ser possível manuseá-los; os frasquinhos de vidro, “com os reagentes para encher os dedos”; tintas; tiras de papel onde se fixam as marcas... Os médicos recolhem as impressões digitais quando fazem as autópsias, mas quando os cadáveres estão demasiado decompostos pedem ajuda a quem mais conhecimentos tem de lofoscopia, “o estudo dos relevos da pele”, como diz o dicionário — precisamente, pessoas como Noémia e Jorge. Mesmo quando já não há pele visível nos dedos, vai explicando Noémia, a derme, camada intermédia que fica logo abaixo da epiderme, “pode conter pontos característicos suficientes para permitir fazer uma identificação”.

Regresso ao cadáver mumificado da Covilhã: o que torna o “caso absolutamente extraordinário” é que, provavelmente, nunca se tinha conseguido retirar uma impressão digital de um corpo enterrado havia mais de 45 anos, explica o director do LPC. Por isso, pretende partilhar a experiência, futuramente, com outros peritos no estrangeiro.

É certo que a identidade do corpo da criança continuava por descobrir. “Este caso mostra que vale sempre a pena tentar recolher impressões digitais”, diz Noémia. Mas o facto é que o mistério permanecia. Uma impressão digital só tem valor se houver possibilidade de a comparar com outra. E neste caso, até ver, não havia.

“O que se apurou foi o seguinte: houve um acidente de carro, em 1968, envolvendo emigrantes portugueses em França. Morreram cinco pessoas da mesma família, que foram enterradas no cemitério da Covilhã”, conta Carlos Farinha. O pai de família sobreviveu. “Por alguma razão, o corpo da criança não terá sido enterrado com os outros... não sabemos porque estava sem caixão”, prossegue. “Como aquela zona é particularmente fria, a destruição dos tecidos foi muito mais lenta” do que é habitual.

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Carlos Farinha dirige o Laboratório de Polícia Científica da PJ, que participou na idntificação do corpo do jovem português encontrado morto no mês passado em Brighton enric vives-rubio

Tendo a autópsia detectado lesões que eram compatíveis com as de um acidente de viação e tendo a polícia recolhido, nas suas averiguações no terreno, indícios de que aquela criança podia ser um dos elementos da família acidentada em 1968, o pai foi informado da descoberta. Veio de França, de propósito.

Não trazia nenhum documento do filho com impressões digitais para comparar com as recolhidas por Noémia e Jorge — em 1968 crianças pequenas não tinham passaporte, conta Carlos Farinha, “estava agregado ao da família”. Não havia também “como ir ao coval originário — na medida em que quando não se trata de campa ou jazigo térreo de família os covais são periodicamente renovados”. Ou seja, não era possível confirmar se faltava um corpo à família enterrada em 1968.

A identificação através do ADN — comparando o perfil recolhido no cadáver com uma amostra do alegado pai — foi inconclusiva. As amostras recolhidas no corpo mumificado estavam demasiado danificadas. Beco sem saída? Este menino era, afinal, o menino que se pensava, ou não?

Desfecho da história: “O tribunal fechou o processo mesmo assim, porque o pai disse: ‘É o meu filho. Tenho a certeza. Ele tem a boca assim porque tinha a chupeta’”, recorda Noémia, com duas fotografias da criança na mão — duas imagens a preto e branco, com mais de 45 anos, que o emigrante trouxe de França quando veio fazer o reconhecimento do filho.

Noémia confessa que também vê parecenças entre estas fotografias, de uma criança pequena, muito bonita, de rosto redondo, e a fotografia do rosto mumificado que aparece no ecrã do computador.

 Com uma “natureza muito focada no apoio ao processo crime”, o que faz o LPC nisto de trabalhar na busca da identidade dos cadáveres, mesmo quando não estão em causa suspeitas de crimes?


“Poderia dizer-se: ‘ah, se não tem a ver com crime não tem a ver com PJ.’ Mas não... Em termos de impacto, esta componente do nosso trabalho, da identificação humana, pode ser tão significativa quanto a outra”, responde Carlos Farinha. “E seria um desperdício não aproveitar o desenvolvimento das nossas técnicas” para esse fim. Por isso colaboram em muitos casos com o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF).

Dar um nome a um corpo pode ajudar uma família a fazer um luto, “a fechar ciclos”. Pode ajudar a resolver um problema de uma herança. Pode encerrar uma investigação policial de um desaparecimento... E pode, seguramente, cumprir aquele que é um desígnio para pessoas como Noémia: “Todos têm direito a ter uma identidade”, mesmo depois de mortos.

Farinha dá exemplos recentes, a começar pelo jovem português encontrado morto no mês passado em Brighton, Inglaterra, junto a uma linha de comboio, depois de ter estado alguns dias desaparecido. “A polícia inglesa contactou o consulado português em Londres para perguntar se estávamos disponíveis. E nós dissemos que claro que sim. Enviaram-nos as impressões digitais recolhidas no local. Nós pedimos cá as impressões do jovem ao Instituto dos Registos e Notariado (IRN). E os nossos peritos fizeram a análise e comparação.” Cada ponto concordante entre a “amostra-problema” — as impressões recebidas de Inglaterra — e a “amostra-referência” — as fornecidas pelo IRN — foi assinalado a vermelho pelos técnicos (a validação é feita por pessoas e não por computadores, nota o director do LPC). No final: “houve um hit” — na gíria que aqui se usa, “concordância”. Corpo identificado.

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Sala de autópsia no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses Sérgio Azenha

De resto, sempre que há notícia do desaparecimento de um português no estrangeiro ou de um desastre em que é previsível que as vítimas apareçam, o LPC adianta trabalho e pede os registos ao IRN  — onde estão os dados biométricos de todos os cidadãos com cartão do cidadão, continua Carlos Farinha. “Lembra-se do pesqueiro que naufragou na Galiza [em Abril do ano passado]? Sabíamos que havia cinco portugueses e tratámos de ir logo junto do IRN pedir aquelas identificações para que se pudesse fazer a comparação mal os corpos fossem encontrados e as autoridades espanholas nos mandassem os dados...”

O director do LPC chama a isto “fazer o trabalho de casa”. Tornar o processo de identificação mais célere, é, desde logo, ser capaz de dar respostas mais rápidas a famílias que vivem momentos de grande ansiedade. O mesmo aconteceu em 2013, diz, quando um avião das Linhas Aéreas de Moçambique que ligava Maputo a Luanda caiu na Namíbia, matando 33 pessoas, incluindo sete portugueses. “Uma equipa do Instituto de Medicina Legal foi para o terreno, mandava-nos para Lisboa a informação que recolhia e nós aqui [no LPC] fazíamos as comparações e dávamos os resultados. Outros países que sabiam que estávamos a fazer aquilo para os nossos nacionais, encaminharam para nós os registos de identificação dos seus cidadãos: a França mandou dos seus, Angola mandou de angolanos, o Brasil mandou de brasileiros...”, conta Farinha. “Aperceberam-se que tínhamos uma equipa na frente e uma equipa pericial na retaguarda, e recorreram a nós. Das 33 vítimas acabámos por identificar 18.”
 

No LPC da PJ, João Paulo Cardoso é “o perito que trata de imagem, dos rostos, da reconstrução facial” — é assim que Carlos Farinha o apresenta à Revista 2. Este é o homem a quem Noémia e Jorge recorrem quando os dedos dos mortos não estão em estado de lhes dar respostas. “A mim só me interessa o crânio, preferencialmente com mandíbula e completamente limpo de tecidos moles”, explica João Paulo, cabelo grisalho, bata branca, sorriso discreto.

Uma das técnicas que usa passa por comparar imagens de crânios de mortos com fotografias de vivos, sobrepondo-as. Dito de uma maneira mais profissional: João Paulo Cardoso faz “identificação forense por sobreposição craniofacial”.

À frente do seu computador, cheio de fotografias de crânios — de frente, de perfil, mais de lado... —, explica: “Fazemos a documentação fotográfica do crânio, ou através de vídeo, no INMLCF. É que nós somos diferentes uns dos outros porque o nosso crânio e mandíbula são diferentes.”

Depois, faz-se a sobreposição de fotografias. “Uma fotografia ante mortem de uma pessoa a sorrir é o ideal para usar neste tipo de identificação, por causa da dentição”, prossegue João Paulo “A dentição dá-nos uma série de elementos.”

Já as selfies e todas as fotografias tiradas muito próximas do rosto não são boas, “porque alteram a forma do rosto”. Uma foto tipo passe, por exemplo, também está longe de ser ideal para este trabalho. Fotografias a sorrir e a rir, sim.

O resultado do trabalho de João Paulo é uma espécie de foto montagem, pedaços de um rosto de alguém vivo, que sorri, sobre a fotografia que alguém fez do seu crânio, depois de morto. Nas sobreposições vão-se assinalando os “pontos concordantes”, até se chegar, ou não, a um veredicto que nunca é de 100% de certeza mas que deve andar lá perto — outras técnicas, como a comparação de perfis de ADN, poderão corroborar ou reforçar o resultado obtido por João Paulo que para explicar como funciona este método utiliza uma montagem que fez, para uma apresentação pública, do seu próprio rosto sobre um crânio.

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João Pinheiro, vice-presidente do INMLCF, patologista forense Sérgio azenha

“Um processo de identificação é sempre um processo de comparação, se não temos nada com que comparar podemos ter as melhores perícias, que elas não nos servem de grande coisa...”, sublinha João Pinheiro, vice-presidente do INMLCF — este patologista forense, foi o primeiro perito português a participar em missões internacionais das Nações Unidas para a documentação de crimes contra a Humanidade (no Kosovo e na Bósnia), a partir do ano 2000, tendo trabalhado na identificação de cadáveres encontrados nas valas comuns que os massacres deixaram.

Esta regra básica vale mesmo para os mais complexos processos de recolha de perfis de ADN, diz. “Se não houver ADN do próprio [que pode ser obtido em objectos de uso íntimo, como uma escova de dentes] ou de primos, de pais, de tios para comparar, não serve de nada.”

Nos casos do jovem estudante português, que tinha sido dado como desaparecido na zona de Brighton, e dos pescadores, na Galiza, sabia-se que identificações pedir ao IRN. “É preciso explicar isto: só podemos ir à base de dados do IRN buscar as impressões digitais na perspectiva de 1 para 1: ‘olhe, dê-me a impressão do senhor não sei quantos ou do BI número tal’ — enfim, é uma maneira de falar, tudo isto tem um processo”, diz Farinha. “Depois, vemos se há correspondência. As coisas são muito rápidas e a colaboração com o IRN é muito boa.”

Ou seja, aparece um cadáver sem nome, não há pistas, mas há impressões digitais? A base de dados do IRN é inútil. Não há fotografias de alguém que se admite pode ser o morto encontrado? João Paulo não tem como trabalhar.

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Os médicos recolhem as impressões digitais mas em cadáveres já demasiado decompostos, é preciso ajuda de peritos em lofoscopia, “o estudo dos relevos da pele” enric vives-rubio

No caso das impressões digitais, há sempre a hipótese de recorrer a uma base de dados da própria PJ — chama-se AFIS (sigla para Automated Fingerprints Identification System). Mas esta é limitada: tem cerca de 200 mil entradas de impressões digitais recolhidas apenas a arguidos e em locais de crime. Noémia diz que nos casos dos indigentes encontrados mortos, cujos cadáveres não chegam a ser reclamados é frequente encontrar correspondência, porque muitos cruzaram-se algures na vida com a Justiça. Mas há todos os outros casos...

E há também todas aquelas situações em que não conseguem recolher nem impressões digitais, por o corpo estar demasiado degradado. Nem sequer um perfil de ADN. “Podemos conseguir tirar impressões digitais de um cadáver com um ano, dois ou três e num corpo com quatro dias não conseguir tirar nada”, diz João Pinheiro. “Depende tudo muito de uma série de factores, a estação do ano, o sítio onde está o corpo, onde foi abandonado ou onde ficou, se havia animais, insectos, formigas, ratos, se estava dentro de água ou não...”

Em relação ao ADN, passa-se algo semelhante. Dá um exemplo recente, um caso “difícil”, que felizmente acabou com uma identificação. O de uma jovem mulher cujo cadáver foi encontrado muitos meses depois da morte, em Tábua, em Novembro do ano passado. Estava em avançado estado de decomposição. “Tratava-se de um corpo esqueletizado não identificado, incompleto, com alguns ossos ainda articulados”, explica. Havia uma suspeita de quem podia ser.

O laboratório de Genética do INMLCF encarregou-se do caso. “Do cadáver foram recolhidas amostras dos pêlos púbicos e do úmero. A análise aos pêlos, a primeira a ser efectuada, não permitiu obter resultados. A análise ao osso, a partir da pulverização com azoto líquido, obrigou a sete extracções, na tentativa de obter material biológico em quantidade e qualidade suficientes para permitir a comparação com a amostra do suposto familiar. As amostras estavam bastante degradadas.” O processo de obtenção de um perfil genético só ficou concluído a 2 de Março deste ano. “E foram precisas sete extracções!”, sublinha João Pinheiro. Aquele era mesmo o corpo da jovem de que se suspeitava.

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"Fazemos a documentação fotográfica do crânio, ou através de vídeo, no INMLCF. É nós somos diferentes uns dos outros porque o nosso crânio e mandíbula são diferentes", explica João Paulo Cardoso, da PJ enric vives-rubio

Nem todos os processos envolvem amostras tão difíceis de analisar como as deste caso, frisa o médico. Se se trata de “um corpo fresco” pode ser “muito rápido”. Mas as identificações podem levar até um ano.

Num tempo em que por causa de séries do tipo as norte-americanas CSI ou Ossos há um pedacinho de cientista forense em cada um de nós, é preciso que se diga isto: “Nas ciências forenses nem tudo o que é possível está garantido”, sublinha o director do LPC, Carlos Farinha. “Na ficção, se se encontra um cabelo, ou uma mancha de sangue está garantido que se vai determinar um perfil de ADN. Na realidade, muitas vezes, em Portugal, os pingos de sangue, por exemplo, caem em superfícies que são lavadas com lixívia, cozinhas, casas de banho, e só isso pode prejudicar a análise.”

A verdade, diz João Pinheiro, é que a identificação humana é, na maior parte dos casos, feita a partir de vários elementos, uma soma de informações recolhidas por diferentes pessoas — dos médicos, antropólogos e geneticistas forenses que trabalham no Instituto aos polícias.

“Raramente usa apenas um método”, prossegue. No caso dos cadáveres que ninguém reclama — 66 no ano passado —, “poucas vezes se fez a identificação pelas impressões digitais”, precisamente por falta de termo de comparação.

 No LPC não há cadáveres — há máquinas, computadores, câmaras fotográficas, reagentes, laboratórios, e, eventualmente, amostras biológicas recolhidas no terreno ou nas morgues... Os cadáveres propriamente ditos para os quais é preciso ir à procura de identidade vão directos para os gabinetes do INMLCF, onde todas as salas de autópsias obedecem a rigorosas regras de higienização e ninguém entra sem batas e umas botas altas de borracha brancas.


O trabalho dos médicos forenses começa com descrição de todos os detalhes. “Todos os órgãos são pesados — o peso diz-nos muito sobre a saúde ou não de um determinado órgão: um fígado pesa um quilo e meio, se pesar 3 quilos é anormal. Um coração pesa 300 gramas, um de um atleta pode pesar 700, ou 800 gramas... se pesar um quilo, não é normal. No coração medimos as válvulas por dentro... estão ali muitas fitas métricas”, diz João Pinheiro, numa das salas do INMLCF em Coimbra. Tudo isso pode ajudar a identificar uma pessoa.

“Depois todos os líquidos são medidos: o conteúdo do estômago, o sangue na cavidade pleural...” Perto da mesa de autópsias, há uma mesa de fotografia de órgãos. “Em tempos tínhamos fotógrafos. Agora somos nós que fotografamos na hora.” Se o corpo estiver “fresco”, as tatuagens, os piercings, os sinais, a roupa podem ser essenciais para chegar a identidade. “E os dentes. Vê-se que dentes perdeu antes da morte, anotam-se as cáries, os tratamentos feitos, com que materiais — em Portugal usam-se uns, no Brasil outros.” Tudo isto pode dar pistas para ajudar a identificar um cadáver. Sobretudo, claro, se o morto quando era vivo ia ao dentista e se consegue chegar aos seus registos dentários.

Os corpos não identificados chegam ao INMLCF, em muitos casos, acompanhados pela polícia — “que já perguntou no terreno, já fez perguntas, às vezes chegamos até a atrasar um pouco as autópsias para dar mais tempo às polícias para chegarem a uma identificação”. Por vezes, como se viu, peritos do LPC assistem — “mas quem toca nos corpos são sempre os médicos”, nota Carlos Farinha.

Algumas amostras acabam a ser analisadas no LPC. Alguns resultados acabam por ser difundidos para a Interpol, quando se assume que se está perante um corpo de um estrangeiro mas não se consegue chegar a nenhuma conclusão sobre quem possa ser. No Verão de 2013, por exemplo, dois corpos foram encontrados no porão de um navio que vinha do Togo e atracou em Ponta Delgada. “Ter-se-á tratado de uma tentativa de emigração. Morreram por confinação. Recolhemos as impressões digitais, foram difundidas internacionalmente mas não temos resposta até hoje”, diz Carlos Farinha.

Em suma, polícias, LPC e INMLCF complementam-se. “Temos regras de articulação, complementaridade e obediência ao interesse público e processual… e vamos funcionando”, prossegue o director do LPC. Ainda assim, em 2014, segundo as estatísticas do INMLCF, houve 16 cadáveres para os quais não foi mesmo possível encontrar um nome. As autópsias revelaram que morreram por suicídio (3), acidente (5), homicídio (1). Noutros casos não se conseguiu sequer determinar a causa de morte.

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Quando os corpos não são reclamados (no site da PJ há 60 por identificar), na maioria dos casos são as autarquias que se responsabilizam pelos funerais destas pessoas nuno ferreira santos

No site da PJ há uma secção com registos de cadáveres por identificar há anos. São cerca de 60 — o de um homem de 50 ou 60 anos encontrado junto a uns arbustos na Travessa dos Salgueiros, no Porto. Outro que caiu na rua, em Lisboa, que deu entrada no Hospital do Capuchos, morreu, e nunca foi reclamado. Outro encontrado junto à linha do comboio, em Benfica. Outro num talude que desce ao Rio Douro, em Canelas…

Na maior parte dos casos, são as autarquias que pagam os funerais destas pessoas. Em Lisboa, é a Santa Casa da Misericórdia (SCML) que os suporta. A Revista 2 acompanhou em Novembro dois deles — aconteceram ambos numa tarde húmida e fria.

“Nestes funerais não há ninguém para confortar, nem há forma de saber alguma coisa da vida das pessoas para dizer umas palavras”, contou o padre António Cecílio Pereira, que está bastante habituado a fazer funerais de não reclamados. “Quando há familiares, vai-se ter com eles antes, pergunta-se: ‘Que idade tinha? O que fazia? Do que gostava?’ E às vezes, no fim da cerimónia, as pessoas vêm perguntar-me: ‘Mas conhecia-o?’ Porque podemos fazer uma narrativa da vida da pessoa. Nestes casos... nestes casos não se pode fazer isso... São funerais diferentes.”

À hora marcada, chegaram as carrinhas e os funcionários da agência funerária Servilusa, com quem a Santa Casa tem protocolo. A assistir, estavam apenas dois voluntários da Irmandade da Misericórdia e de São Roque, que tem entre as suas missões acompanhar até à última morada estas pessoas. Levaram flores.

“São dois homens, não têm nome, nem têm idade, nada. O resto é com a polícia”, limitou-se a explicar um funcionário da agência, depois de retirados os caixões das carrinhas.

Uma vez posicionados nas covas abertas na terra molhada, o padre leu umas palavras: “Senhor, que a morte deste nosso irmão nos comprometa a viver mais de acordo com o evangelho, a levar uma vida mais cristã, que nós vivamos mais unidos e que a nossa fé aumente. Senhor, Nosso Pai, recebe a alma deste nosso irmão. Morrendo para este mundo, viva para nós e nenhum de nós que aqui estamos se perca ou desanime na sua caminhada. Amén! Assim seja!”

Repetiu duas vezes — uma por cada corpo que baixou à terra.

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