Manifestação contra a invisibilidade dos sem-abrigo

Pessoas com experiência de vida de rua estão a preparar um protesto que é, ao mesmo tempo, um "evento cultural", no Porto, no arranque da campanha eleitoral.

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O grupo que está a preparar a manifestação Paulo Pimenta
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Não há memória de alguma vez tal ter acontecido: pessoas com experiência de vida de rua a organizar uma manifestação “contra a invisibilidade” de quem está sem abrigo. Estão a preparar tudo, passo a passo, para que aconteça no Porto, a 19 de Setembro, primeiro dia oficial de campanha eleitoral.

Terça-feira após terça-feira, os membros do movimento Uma Vida como a Arte, nascido para aproximar as pessoas sem abrigo umas das outras e do resto da sociedade, juntam mesas num canto da Casa da Rua, a comunidade de inserção da Santa Casa da Misericórdia do Porto, e sentam-se em seu redor.

Não querem desfilar pelas ruas, de altifalante, a pedir que olhem para eles e que os vejam. Querem fazer uma manifestação que seja, ao mesmo tempo, um evento cultural. E para isso estão a preparar cartas para enviar a diversos artistas, a pedir-lhes que a partir das 17h daquele dia subam ao coreto da Cordoria, não pelo dinheiro, que não podem pagar, mas pela causa, o respeito pelos direitos humanos.

Andam a pensar nisto há meses. Pensar nisto é uma forma de dar a volta aos seus dias entediantes e mudos. Chegaram a apontar 17 de Dezembro de 2014. Faria um ano que um dos fundadores do movimento, Vítor Santos, aparecera morto na rampa de acesso ao Bairro da Sé. Só que, naquele dia, a Câmara do Porto ia fazer o jantar de Natal. O bacalhau com couves desviaria os sem-abrigo.

Decidiram adiar o protesto para melhor oportunidade. “A verdade é que também não estávamos preparados”, reconhece La Salete Miranda, 53 anos, rindo-se só de se lembrar. Nem sabiam que tinham de pedir autorização à autarquia ou de garantir sistema de som aos músicos. “Pensávamos que era só aparecer!” Recuperaram a ideia tarde. E agora estão a correr contra o tempo.

A ideia despontou ia Novembro no fim. António Ribeiro – um homem de 64 anos que os outros tratam por “senhor” – sugeriu que processassem o Estado por não cumprir “as suas obrigações”. Não tem todo o ser humano direito a um nível de vida que lhe garanta alimentação, vestuário, alojamento, assistência médica? Fazia perguntas destas e citava a Constituição da República Portuguesa, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Os outros ficaram encantados com o discurso do antigo administrativo, que tentou ser taxista e está na indigência desde 2012. E é ele quem mais dá a cara pelo movimento. Sabe-se explicar. E faz por estar asseado, penteado, nada amarrotado. “Ando sempre apresentável. Não tem a ver a higiene com o resto...”

Processar o Estado
Não se recusa a expor-se: “Eu entrei no movimento porque fazia uma refeição por dia na Casa da Rua. Durante 22 dias, só sopa. Depois, uma refeição completa. Conseguia gerir. Com as frutas, com o pão que outros às vezes não queriam, aguentava-me. Andei cerca de um ano, talvez dez meses, sem rendimento social de inserção [RSI], nem nada.” Uma filha pagava-lhe o quarto numa pensão rasca.

A prestação social não lhe garante o básico. Recebe 178,15 euros, o valor máximo previsto para uma pessoa sozinha. Paga 150 euros por um quarto, água e luz incluídos, em casa de uma mulher de 91 anos. Sobram-lhe 28,15. Almoça numa cantina da União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, São Nicolau e Vitória e leva jantar, que estica para pequeno-almoço.

Quando o desafiam a falar em público, faz aquelas contas, convencido de que com elas deixa qualquer um a pensar. E logo lança perguntas que lhe parecem indiscutíveis. “Se preciso de comprar medicamentos, como faço? Se estamos isentos de taxa moderadora nas consultas [do Serviço Nacional de Saúde] por não termos meios económicos, temos meios económicos para pagar medicamentos?”

Conseguiram uma advogada para intentar a acção contra o Estado: Carla Ramos, que tem um percurso de trabalho voluntário, irá representá-los. Mal começou a estudar se a acção deveria ser individual ou colectiva, já a notícia se propagava pelas ruas, até pela boca dos voluntários que auxiliam sem-abrigo. Já está decidido. Vão mover uma acção contra o Estado português por não cumprir direitos consagrados na Constituição e vão pedir ao Ministério Público que investigue as mortes de sem-abrigo no Porto. Só estão à espera que a Segurança Social lhes assegure apoio judiciário, não vão as custas cair-lhe em cima.

Entre 2006 e 2012 morreram em média 18 sem-abrigo por ano. Em 2013, 27; em 2014, 12. Na primeira metade deste ano, oito. Não falam de cor. São os números apurados pelo Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo da Cidade do Porto (NPISA), que em Julho apresentaram na Assembleia da República, quando lá estiveram a convite do Bloco de Esquerda.

Nunca passara pela cabeça de António Ribeiro que um dia haveria de entrar na Assembleia da República. Nem na dele, nem na de La Salete Miranda, Christian Georgescu, Celina Silva, António Barbosa, João Rocha. Pela primeira vez, um grupo de pessoas com experiência de rua subiu a escadaria principal, visitou a sala dos plenários, expressou a sua opinião. Era o finalzinho da legislatura. A ouvi-los só estavam alguns dirigentes do Bloco de Esquerda, um representante de o Partido Ecologista Os Verdes, e membros de algumas associações.

Pergunte-se-lhe o que mudou desde que um grupo de pessoas com experiência de vida de rua assumiu uma voz, em Dezembro de 2013. “Verdadeiramente, na nossa vida nada está a mudar, por isso vamos fazer a manifestação”, começa por responder António Ribeiro. Depois, ocorre-lhe uma mudança prática no RSI.

O movimento foi lançado num dos encontros do ciclo Vozes do Silêncio, iniciativa do NPISA da Cidade do Porto, a rede interinstitucional constituída pela Segurança Social e por 64 entidades formais e informais que prestam algum tipo de apoio aos sem-abrigo. Naquela manhã, no Museu Soares dos Reis, vários questionaram a necessidade dos candidatos a RSI fazerem prova de residência no território nacional. Uma rapariga levantou-se para dizer que saíra do Algarve, vivera em diversos sítios antes de chegar ao Porto, e não entendia por que tinha de recolher atestados de residência por tudo quando passara nos doze meses anteriores. Por que não lhe bastava a morada actual? Na mesa, a então directora adjunta do centro distrital de Segurança Social, Ana Venâncio, prometeu resolver aquilo.

Aquele problema desapareceu, de facto. E isso ajudou o grupo a criar uma certa ideia de que pode influenciar algumas decisões no sentido favorável. Exemplos opostos não lhe faltam, todavia.

Naquela mesma mesa, naquela manhã, estava o vereador da Habitação na Câmara do Porto, Manuel Pizarro. Sensibilizado com o que foi ouvindo, prometeu iniciar “uma grande mudança”. Ainda assistiu a algumas reuniões do NPISA, pessoalmente ou representado. Pediram-lhe que encontrasse forma de as pessoas que vivem na rua poderem fazer as suas refeições num lugar abrigado, reservado dos olhares de quem passa, e não na rua, de pé, com a tigela na mão. O plano era ter cinco pontos. Através de um sistema de escala, as organizações de voluntários poderiam fazer a distribuição dos alimentos que iam angariando. Até agora, nada.

A manifestação há-de ter cartazes inspirados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Estão a trabalhar numa carta com um conjunto de reivindicações para ler no palco e distribuir por quem aparecer. António Ribeiro tomou nota de tudo com a sua letra redondinha. No documento, que há-de ser afinado, exigem “maior qualidade cívica na prestação de cuidados”; “mais técnicos para que haja um acompanhamento próximo e personalizado”; “aumento do RSI para 400 euros”; "acesso a medicação atempada e gratuita”; “alojamento individual e permanente”. “Depois das eleições, vamos enviar a carta aos vários grupos parlamentares”, afiança.

Pequenos passos
O deputado que os convidou a ir à Assembleia da República, José Soeiro, prometeu que lá voltarão. “As classes mais baixas não falam. São faladas”, diz, citando o sociólogo francês Pierre Bourdieu. “No Parlamento, o discurso das pessoas é muito mediado pelas disputas dos partidos. Acho que os testemunhos têm uma força muito grande. Só que não basta falar, é preciso haver quem ouça.”

Está sempre alguma técnica social do NPISA a mediar as conversas, terça-feira após terça-feira – já foi muito Paula França, acontece ser Olga Rocha, mas é sobretudo Andreia Valente. E algum técnico de entidades parceiras, como Alfredo Figueiredo Costa, da WecomeHome, ideia incubada na Universidade Católica do Porto.

Já não se atropelam tanto como quando o movimento começou a formar-se, em Junho de 2013. Nem parecem tão inclinados para privilegiar a voz da “doutora” de serviço. Se notam que uma técnica os quer direccionar, já não se precipitam a aceitar, já rebatem. “Vamos pensar.”

Alfredo Figueiredo Costa destaca “o compromisso que têm assumido, o espírito de grupo que têm desenvolvido”, pouco a pouco, quase sem perceber. “Apesar dos conflitos que vão tendo, quando é preciso, eles organizam-se”, salienta. Vão a jornais, rádios, televisões, colóquios, congressos.  “Se não tivessem isso, andavam a divagar pelas ruas.”

Um enfado só os dias cheios de nada, observa António Ribeiro. “Não tendo nada para ocupar o tempo, os sem-abrigo entregam-se à vida”, diz La Salete. Não falam só no consumo de bebidas alcoólicas ou de drogas ilícitas, falam em solidão, tristeza, depressão. Para ocupar os “vazios existentes” arranjaram também uma pequena horta, no Espaço Musas, “departamento autónomo dedicado à arte, à cultura, ao lazer e ao conhecimento, dentro do Sport Musas e Benfica”, associação desportiva sediada no Porto. Celina, La Salete e Noé Alves respondem por ela.

É só quase um canteiro com couves, tomates, pimentos e outros produtos hortícolas, mas dá alegria, sobretudo, para Celina, que vive sozinha, com o cão, Roque. Sobe duas longas escadarias duas vezes por dia para regar.“O movimento deu um novo sentido à minha vida”, diz a mulher, de 50 anos. “Estava muito deprimida. Estava sempre enfiada em casa. Ficava muito tempo, na cama, a ver televisão. Não bebia até cair, mas quase.” Só Roque a obrigava a sair.

Integrou-se no grupo, tem mais em que pensar, objectivos nos quais se concentrar. “Isto deu-me, de certa forma, uma rotina. Ir às reuniões todas as semanas foi bom. E foram surgindo novas coisas.” Os encontros do ciclo Vozes do Silêncio, o filme documentário do realizador francês Christophe Bisson, que só deverá estrear no próximo ano, a ida ao Parlamento. Deixou as drogas, escreve mais poesia, até publicou um livro. E melhorou a relação com os filhos, criados pela avó quando a droga lhe comandava os dias. “Claro que tenho dias em que ando mais em baixo, mas estou melhor.”

É vê-la a preparar a manifestação cultural. “A minha expectativa é boa. Tem de ser boa. Tenho de pensar para cima, se não já não me apetece fazer nada. Se não faço nada, não posso culpar a sociedade de… Nós também somos sociedade. E temos muito pouco a perder. É uma forma de chamar a atenção para o problema. Sendo uma festa, com música, é mais apelativo.”

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