A contradição entre a prática e o discurso liberal radical

Há que melhorar o funcionamento do Estado nas áreas sociais, na educação e na saúde, mas também nos serviços vitais para o crescimento económico e a actividade empresarial

O programa da coligação reflecte mais uma vez a ambiguidade do radicalismo liberal da direita que nos governa face ao papel do Estado. As propostas parecem radicais na segurança social (com o plafonamento), na educação com a ideia de maior escolha (repescada do documento de reforma do Estado de há dois anos), na saúde, como foram no discurso sobre o desmantelar de serviços públicos.

No entanto, estão enunciadas de forma genérica que deixa dúvidas sobre se são para implementar, e em que formato, e com que consequências. Mas pior, não se compreende como é que a concretização destas ideias pode contribuir para solucionar os problemas existentes na educação, no funcionamento do Estado, ou de sustentabilidade da segurança social.

Estas dúvidas são legítimas, num Governo que foi longe na afirmação de um liberalismo radical, mas que foi campeão no aumento de impostos e no aumento do endividamento do Estado.

Durante a actual legislatura, o discurso liberal radical foi usado como justificação para desmantelar serviços públicos, cortar no apoio aos mais pobres (veja-se a redução do RSI em mais de 30%), reduzir despesa em áreas como a Educação e a ciência, cortar salários e retirar regalias aos pensionistas e aos trabalhadores do sector público e do privado. Este discurso liberal justificou também que se tenha ido para além do que o memorando da Troika exigia na venda de activos do Estado, com as privatizações a excederem em mais de 60% os valores acordados no memorando.

Mas, ao mesmo tempo, este discurso liberal, não impediu este de ser o Governo que procedeu ao maior aumento de impostos, não seguindo o memorando que previa que a consolidação seria feita apenas em 1/3 pelo aumento dos impostos e fez uma consolidação centrada em mais de 60% no aumento da carga fiscal.

Este foi também o Governo que, em média, manteve maior peso da despesa pública em percentagem do PIB e o que assistiu ao maior aumento do endividamento, e que mesmo tendo vendido tantos activos, termina o seu mandato com um nível record de dívida pública.

Em vez de menos Estado e melhor Estado, tivemos o mesmo peso do Estado, mas pior Estado. Houve uma clara degradação do funcionamento de muitos serviços públicos (veja-se a Justiça a educação ou a Saúde), houve uma degradação da confiança dos pensionistas e funcionários públicos, e uma pioria da relação do Estado com cidadãos e empresas, com um maior peso burocrático para as empresas cumprirem os seus deveres fiscais e um aumento brutal das multas cobradas por tudo e por nada. Houve ainda uma maior centralização e um ataque importante à autonomia de instituições públicas independentes do Governo, desde os municípios, às universidades. Algo nada de acordo com os princípios liberais.

Perante este quadro o que é que a actual maioria propõem? Mais do mesmo. Mantêm a filosofia da austeridade (por exemplo retirando de forma lenta as medidas extraordinárias de corte e aumento de impostos) e propõem um maior papel dos privados na segurança social, na educação e na saúde, num modelo que parece propor que à classe média que continue a pagar um nível elevado de impostos, mas tenha cada vez mais que, adicionalmente, pagar também pela educação dos seus filhos, pelo acesso a saúde de qualidade e que prover para a sua reforma em esquemas privados.

Este é o sentido das propostas da coligação que, em vez de enfrentarem os problemas existentes com soluções pragmáticas, propõem alterações ideológicas radicais, que em nada resolvem os problemas existentes.

O plafonamento da segurança social é um bom exemplo. Este significaria que os novos trabalhadores com rendimentos superiores a um determinado limiar deixariam de contribuir para a segurança social no rendimento acima desse limiar. As pensões que receberiam dentro de 40 ou 50 anos seriam limitadas a um máximo, de acordo com esse limiar.

Isto significa que, para manter uma reforma de acordo com o seu rendimento, estes trabalhadores teriam que recorrer a fundos de pensão privados. Mas significa também que o sistema público de pensões continuará a ter os mesmos encargos nos próximos 40 ou 50 anos (só depois disso as pessoas no novo esquema se tornam pensionistas), o que implica uma situação em que, no sistema públicos as responsabilidades se mantêm, mas as contribuições diminuem.

Esta alteração é muito diferente da proposta do PS, que tem um carácter temporário e dá um estímulo económico, promovendo uma mais rápida recuperação do emprego que ajuda a estabilizar a segurança social. O plafonamento, proposto pela coligação, significa que, à medida que mais pessoas entrem a segurança social se vá tornando cada vez mais desequilibrada. Dentro de dez anos poderíamos ter um grave desequilíbrio na segurança social, dentro de vinte um rombo insustentável.

Neste esquema, o rombo só é evitável se, em paralelo, se colocar os actuais trabalhadores a pagar taxas de contribuição mais elevadas sobre o rendimento elegível. Os novos trabalhadores teriam assim, nos próximos 40 ou 50 anos, que pagar o mesmo montante para o sistema público (para evitar o desequilíbrio), mas ao mesmo tempo seriam chamados a descontar também para o privado, se quisessem garantir uma reforma razoável.

O plafonamento não resolve nenhum dos problemas da segurança social. Ao diminuir as contribuições dos novos trabalhadores coloca problemas de sustentabilidade, sem conseguir no curto prazo gerar nenhum estímulo significativo ao crescimento em emprego, e nos 40 ou 50 anos de transição vai obrigar a um maior peso de contribuições sobre os trabalhadores no activo, criando problemas de competitividade e de criação de emprego. O plafonamento apenas serve uma agenda ideológica de alargar o espaço do regime de pensões privado.

O mesmo se pode dizer das propostas na educação ou na saúde. Em que o estimulo a que mais pessoas se mudem para o sistema privado, em nada contribui para resolver problemas reais como o aumento do abandono escolar que está a acontecer, ou a necessária melhoria da qualidade de ensino e dos serviços de saúde, sendo ainda legítimo perguntar que custos orçamentais teria esta evolução, num contexto em que havendo capacidade no sector público se estaria a usar fundos públicos para financiar a expansão do privado.

Mais do que uma discussão sobre mais ou menos estado e mais ou menos privado o país precisa é de melhor estado e melhor regulação dos mercados. As privatizações dos últimos anos, ao tornarem privados monopólios em áreas viradas para o aproveitamento de rendas no mercado interno, em nada contribuíram para o melhor funcionamento dos mercados, por exemplo da energia ou na área aeroportuária. Os privados podem e devem ter o seu espaço na saúde, educação, ou nas pensões, mas a ideia de que a solução para os problemas existentes passa apenas por privatizar é não só uma ideia simplista, como em alguns casos uma ideia errada e perigosa.

A alternativa que o partido socialista apresentou aposta na melhoria da eficiência do Estado que temos, e na sua qualificação com a melhoria dos quadros e a criação de centros de competências. Aposta também na retoma do processo de simplificação, dos procedimentos públicos, e da carga burocrática exigida às empresas e cidadãos. Estes processos podem gerar diminuições estruturais de custos de funcionamento. Mas tão importante como a eficiência é a eficácia dos serviços e das instituições públicas. O objectivo central da reforma que o Estado português necessita, tem de ser melhorar o funcionamento do Estado, nas áreas sociais, na educação e na saúde, mas também nos serviços vitais para o crescimento económico e a actividade empresarial, simplificando e facilitando a vida às empresas, desonerando quem investe e reforçando a acção no apoio à inovação e à internacionalização.  

Prof. Economia Universidade do Minho, cabeça de lista do PS pelo distrito de Braga

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