A luz da Índia

Na Índia, como em tantos outros lugares, o dia começa quando começa a luz.

De manhã cedo, ouve-se o rodar das bicicletas e dos carros, o som de muitos passos, a buzina dos rickshaws, vozes soltas, chamamentos de vendedores e do dobi, o lavadeiro, alguns walla que iniciam o trabalho, principalmente chaiwalla, os que vendem chá. O tocar dos sinos nos templos hindus indica a primeira devoção ritual do dia, o chamamento à oração assinala a primeira oração para um muçulmano. Ouvidos mais atentos podem, em alguns lugares, identificar gritos de macacos e de pavões, a anunciar o romper do sol.

O quotidiano de um hindu começa, todavia, com um rito que convoca a luz. Antes de iniciar as actividades diárias, purificado pelo banho, ele acende uma lamparina em frente à imagem do deus ou da deusa — da família e da casta — ou um pequeno pau de incenso (aggarbati). Das lojas, antes de as portas se abrirem sai pelas frinchas o cheiro do sândalo, do jasmim ou outro do aggarbati, indicador de que a divindade está a ser evocada para propiciar o triunfo do dia. Se nos atrevermos a olhar para dentro das casas, distinguimos as práticas rituais domésticas hindus (grhya sutra) de  outras práticas religiosas que, na Índia, não sem conflitos e contradições se foram sedimentando ao longo dos séculos: o Islão, o sikhismo, o budismo, o jainismo, o cristianismo, o judaísmo, a religião parsi, diferentes crenças animistas.

Cerimónias de natureza secular, como a abertura de uma instituição, o início de um evento, de uma assembleia, de um congresso, são iniciadas pelo acender de uma lamparina de pé alto, geralmente de cinco pavios, pelos participantes ou convidados de maior prestígio.

A devoção no hinduísmo, a religião dominante da Índia, é genericamente designada por puja e integra diferentes momentos, o mais importante dos quais  é o arti (transcrição de aarti). Realizado ao longo do dia no templo, ele é frequentemente definido como a cerimónia da luz. O sacerdote faz rodar com a mão direita uma lamparina (deepa) iluminada com ghee (manteiga clarificada), o óleo mais auspicioso, ou com cânfora (kurpura) em frente da divindade. Os movimentos circulares são feitos no sentido do relógio, primeiro à volta da cabeça, depois do corpo e, finalmente, dos pés da imagem (murti) do deus ou da deusa. Seguidamente, a lamparina é passada pelos devotos que tocam os pavios com as mãos, as quais depois levam aos olhos e à cabeça, assim recebendo as bênçãos neles contidas. Na verdade, o fogo, venerado na Índia antiga como um deus, Agni, constitui o símbolo essencial da energia divina e, ao iluminar a chama em frente da divindade, o devoto reconhece a supremacia sagrada.

A metáfora da luz como conhecimento, familiar a muitas culturas, não é estranha ao hinduísmo. Efectivamente, a luz emanada pela chama da lamparina elimina a ignorância e ilumina o conhecimento e o reconhecimento da grandiosidade do divino. É também esta luz que permite aos devotos darshan, “ver, olhar”, e serem olhados auspiciosamente pela divindade. Ora o acto de “ver”, assegurado pela luz, pode ser levado mais longe: as seis tradições filosóficas da Índia recebem o mesmo nome em sânscrito, darsana, em que “ver” significa ver a verdade, um processo e uma forma de diálogo permanente entre diferentes perspectivas que, na sua diversidade, constituem a complexa unidade da sociedade e da religião hindu.

Anualmente, no mês lunar de kartika (de meados de Outubro a meados de Novembro), celebra-se um dos mais importantes festivais do calendário hindu, o Diwali, a festa da luz. Ao longo dos cinco dias e noites da festividade são acesas inúmeras lamparinas (diyas) nas casas, nas ruas e nos muros, nas árvores, nos templos. A festa da luz comemora o regresso, depois de catorze  anos de exílio, de Rama (herói do poema épico Ramayana e um avatar de Vishnu), da sua mulher, Sita, e do irmão, Lakshman, a Ayodhya, o reino que lhes tinha sido roubado pelo demónio Ravana. As casas, cuidadosamente limpas, são decoradas e por vezes pintadas de fresco para receber as divindades e, sobretudo, Lakshmi, mulher divina de Vishnu e deusa da prosperidade. Por isso, os rangoli de diferentes padrões, desenhados no chão com pigmentos, areia, arroz ou pequenas sementes integram o lótus que a representa e que representa simbolicamente a luz, a iluminação, a mente iluminada. É por excelência um tempo de reciprocidade e de reforço dos laços familiares e sociais, através da dádiva de presentes e dos doces associados ao Diwali, mithai.

O Diwali celebra a vitória da luz sobre a escuridão e, por extensão, do conhecimento sobre a ignorância. A luz, como Lakshmi, está ainda associada à auspiciosidade. O termo lakshmi surge de resto no Rig-veda (um dos quatro Vedas, textos sagrados  fundadores do hinduísmo, compostos entre 1500 e 1000 ac) com o sentido de “boa sorte; auspiciosidade”. Uma  das imagens votivas mais auspiciosas do culto hindu é precisamente dipalakhsmi, uma lamparina representando a deusa. Ganesh, o deus com tromba de elefante, é evocado para remover os obstáculos que se interponham entre os devotos e Lakshmi, assim assegurando a prosperidade que o Diwali invoca e que ela incorpora.

Na Índia, outras práticas religiosas celebram ritualmente a luz em grandes festivais anuais. No dia do Diwali, os jainistas comemoram o moksha (“libertação”, do samsara ou ciclo das reincarnações) de Mahavira (em sânscrito “grande herói”), o fundador — ou reformador — do jainismo. Os sikhs, por seu lado, celebram-no como Bandi Chhork Divas, “o dia da libertação”, no qual, em Outubro de 1619, Guru Hargobing, famoso pelo seu domínio das artes marciais, foi libertado da prisão do forte de Gwalior em que tinha sido detido com  52 reis hindus que, como ele, se opunham ao poder mogol.

No plano cosmológico, vale a pena referir que o budismo, quer na sua vertente de Hinayana (“pequeno veículo”) quer de Mahayana (“grande veículo) se inspira em imagens de luz e de movimento na elaboração do seu sistema conceptual.

Estas celebrações da luz mergulham fundo na Índia,  assinaladas que são desde os textos sagrados clássicos. É o caso dos Upanishads, textos védicos tardios compilados entre o século VII e V ac, que usam recorrentemente imagens da luz para referir o êxtase religioso. Um dos primeiros e principais textos, Chandogya, conceptualiza a vida depois da morte como  a luz de todas as luzes, nos seguintes termos: “...este corpo é imortal. Foi apropriado pela morte. (Mas) a entidade (atman) que vive para lá da morte e para lá do corpo, ... essa entidade serena, quando se liberta do corpo, atinge a maior das luzes”.

Rosa Maria Perez é professora do Departamento de Antropologia do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa e professora visitante de Institute Chair Professor (Antropologia) do  Indian Institute of Technology (IIT) Gandhinagar. É membro do conselho da European Association for South Asian Studies (EASAS) e consultora  da  European Science Foundation e do  South Asia Democratic Forum (SADF).

 

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Lamparina acesa a ghee no centro de pétalas de cravíneas, usadas para fins rituais e domésticos (Rajastão) cortesia rosa maria perez
Extremidade de rangoli, elaborado para um ritual hindu doméstico (Karnataka) cortesia rosa maria perez