A delação premiada

Há aqui uma ironia adicional: foi Dilma quem assinou a mais recente lei de delação premiada.

A tão admirada operação Lava Jato só está a ser possível devido à instituição do mecanismo da “delação premiada”, que permite à justiça brasileira negociar com colaboradores a denúncia de outros crimes e criminosos, em troca de uma redução de pena até dois terços, do seu cumprimento em liberdade, ou até mesmo do perdão judicial.

O Brasil não está sozinho nisso: a delação premiada está instituída em países como os Estados Unidos, onde é utilizada em larga escala, ou a Itália, onde foi absolutamente fundamental no combate à corrupção, em particular na famosa Operação Mãos Limpas.

A adopção de uma lei semelhante em Portugal deveria estar a ser debatida. É verdade que o nosso enquadramento jurídico inclui a figura do “direito premial”, que valoriza vagamente a colaboração dos arguidos e permite a atenuação das penas nos casos de corrupção e branqueamento de capitais. Mas todas estas possibilidades estão dissolvidas na costumeira abstracção jurídica nacional, sem que nunca tenha sido desenvolvida uma definição clara do estatuto do arrependido. Aliás, o próprio conceito do “arrependido” é esclarecedor quanto à postura da lei nacional, que parece mais interessada em salvar almas criminosas do que na eficácia da aplicação da lei: o delator à brasileira não tem de estar arrependido de coisa alguma, admite-se perfeitamente que ele esteja apenas interessado em salvar a pele. É uma perspectiva utilitarista da lei, que o enquadramento jurídico português valoriza pouco.

O resultado deste puritanismo jurídico, que de certa forma entende que uma justiça digna não deve negociar com criminosos, é aquele que se vê: um país com altos níveis de corrupção e inúmeras investigações, mas sem corruptos presos. Basta pegar no popular caso Sócrates e ver o modo como a investigação parece andar aos círculos. As justificações de Sócrates para tamanha ostentação de riqueza são totalmente implausíveis, mas não é por acaso que a sua defesa afirma obsessivamente que não sabe de que crime está o seu cliente acusado – nos casos de corrupção, os indícios podem ser gritantes, mas prová-los é uma tarefa hercúlea, dada a sofisticação e complexidade dos processos envolvidos.

Numa edição recente da revista Época, um dos mais destacados procuradores da Operação Lava Jato – Deltan Dallagnoi – assinou um óptimo e cristalino artigo em defesa do mecanismo da delação premiada, sobretudo após Dilma Rousseff ter declarado publicamente que “não respeita delator”. “Estive presa na ditadura e sei o que é. Tentaram-me transformar em uma delatora”, afirmou. Comparar a actuação de uma ditadura assassina com a de um Estado de direito é, só por si, uma obscenidade, mas há aqui uma ironia adicional: foi Dilma quem assinou a mais recente lei de delação premiada.

No seu texto, Dallagnoi dá o exemplo de uma anotação ilegível encontrada num documento apreendido: “Pgto to Gr@ + Gr! Dedznd partGr@KA + 127,000”. Só com a colaboração de um investigado foi possível compreender o seu significado (valores de subornos e respectiva divisão), mas, sobretudo, ir atrás das provas que comprovassem materialmente o pagamento de tais subornos. De facto, o principal objectivo da delação premiada não é a condenação por depoimento, mas sim orientar a investigação na direcção certa e alertá-la para crimes e criminosos que ela própria desconhecia. Tendo em conta a evolução e a complexificação do crime organizado, é um instrumento que faz todo o sentido a justiça ter ao seu dispor. 

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