A engatatona das dúzias

Judd Apatow regressa à sua melhor forma, Amy Schumer é uma revelação, Descarrilada é a melhor comédia americana em muito tempo

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É com Descarrilada que Judd Apatow reencontra a sua melhor forma DR

Seria uma pena sair de Descarrilada com a ideia apenas de que o basquetebolista Lebron James é um forreta que não gosta de pagar o almoço e o seu colega Amar’e Stoudemire é um fulano desconfortável com hospitais.

Quer dizer, é inevitável, seja como for; tal como é inevitável sair de Descarrilada com a ideia de que está aqui a versão feminina das comédias sobre o engatatão das dúzias que dá por si apaixonado, com uma engatatona das dúzias que dá por si apaixonada. Mas o que é realmente importante aqui é outra coisa: é que Descarrilada prova que continua a haver esperança para a comédia americana para lá das Ressacas e das comédias românticas de linha de montagem (geralmente com Jennifer Aniston e afins), sem que para isso seja preciso nivelar por baixo.

Sim, este é um filme desbocado, paredes-meias com o brejeiro, naquela base do “eles não vão fazer isto pois não? Ui, fizeram mesmo”. Mas é também uma comédia que não trata as suas personagens, masculinas ou femininas, como meros bonecos funcionais. Prefere construir-se sobre a sua humanidade, rir-se com elas em vez de se rir delas. Isso tem sido apanágio do trabalho (mesmo que irregular) do seu director, Judd Apatow, que, como produtor, argumentista ou realizador, tem estado por trás de algumas das melhores comédias americanas da última década e tem pugnado por uma comédia inteligente e moderna. Como realizador, contudo, é com Descarrilada que Apatow reencontra a sua melhor forma (a de Virgem aos 40 Anos ou Um Azar do Caraças), em grande parte devido à sua aposta na comediante Amy Schumer, figura aclamada do stand-up e da televisão (com a série Inside Amy Schumer) que faz aqui brilhantemente a passagem ao grande écrã. Schumer escreveu o argumento e interpreta igualmente o papel principal, encenando-se como uma trintona de sucesso, filha de pais separados, cuja opção por ir para a cama com todos os que a quiserem sem se comprometer com nenhum (“a monogamia não é realista”, como o pai lhe ensinou em miúda na abertura do filme) lhe prega uma rasteira quando descobre um homem (Bill Hader) que quer um compromisso e não apenas sexo. Para quem não conhece o trabalho prévio da actriz – e mesmo para quem o conheça – Schumer é uma revelação, e Apatow sabe dar-lhe o espaço suficiente para ela escrever e criar um filme que joga leal com as suas personagens e com o seu público, que não precisa de fazer pouco para fazer rir. E que, inscrevendo-se na linhagem do cinema de Apatow (e dos seus “apoderados” como Paul Feig, Seth Rogen ou Melissa McCarthy), pergunta onde é que começamos verdadeiramente a ser adultos e a assumir a responsabilidade por nós próprios, ou não fosse essa uma das questões fulcrais da sociedade contemporânea (americana, mas não só).

Claro que Descarrilada não é perfeito – um dos problemas recorrentes de Apatow é o facto dos seus filmes serem sempre demasiado longos e insuficientemente ritmados quando a comédia é, sempre foi, uma questão de ritmo e de timing. No caso dele, não é defeito, é feitio, a par da sua tendência para subordinar tudo à história, ao gague e à personagem, resultando em filmes formalmente funcionais e apagados. Descarrilada não foge a essa regra, e duas horas de duração é um pouco excessivo (mesmo que se perceba que a ideia é emprestar espessura às personagens). Mas o conteúdo é tão bom e tão inteligente que não nos importamos mesmo nada de passar por cima disso para o recomendarmos sem reservas como a melhor comédia americana que vimos em muito tempo.

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