Retrato do coleccionador

A colecção de Alberto Caetano não nos fala apenas das obras. É um retrato daquele que a fez.

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Ateca, de Joaquim Rodrigo: a Colecção Alberto Caetano tem modernistas em quantidade e qualidade assinaláveis JOSÉ MANUEL COSTA ALVES

Quem conhece o arquitecto e coleccionador Alberto Caetano sabe, porque ele não se escusa nunca a contá-lo, como começou a colecção de arte que reuniu: em menino, saía do liceu e ia bater à porta de grandes artistas modernistas, para muito simplesmente lhes pedir uma obra.

Uns, como Sarah Affonso, António Soares ou João Vieira, acederam ao pedido. Outros ignoraram-no. Seja como for, estes foram os primeiros passos de quem já na altura se via como coleccionador de arte, e que assim encarava a possibilidade de dar início àquilo que seria a paixão de toda uma vida.

Como é evidente, com o passar dos anos os métodos de aquisição mudaram. Em galerias, leilões ou nos ateliers dos artistas, em cumplicidades também de amizade ou geração, desfazendo-se pontualmente de uma e outra peça para uma aquisição de maior importância, Alberto Caetano conseguiu reunir um núcleo impressionante pela quantidade de obras (mais de 300, ao momento), e pela qualidade e originalidade das mesmas. Galeristas contam ainda hoje, passadas quase quatro décadas desde que começou a comprar arte, que Alberto Caetano é um coleccionador como hoje já só raramente se encontra. E isto porque, mais do que comprar como forma de investimento, compra para o seu prazer. Dito de outra forma, como Raquel Henriques da Silva e Adelaide Duarte afirmam num dos textos do catálogo editado para esta ocasião, a colecção de Alberto Caetano não nos fala apenas das obras. Fala-nos, sobretudo, do seu autor. E, por isso, é um retrato daquele que a fez.

No Museu do Chiado, em dia ensombrado pela demissão do director — o que, infelizmente, transforma esta na última exposição dirigida por David Santos —, tudo o que constituiu o meio artístico de uma certa geração estava presente para a inauguração de Eu e os Outros — Colecção Alberto Caetano, que será também a primeira de uma série de mostras organizadas pelos Amigos do MNAC. Alberto Caetano usufruiu neste grupo de uma confluência de talentos e patrocínios que lhe permitiu juntar nomes tão significativos na preparação desta exposição quanto os de Maria Filomena Molder, Francisco Capelo e Vera Velez entre muitos outros, incluindo jovens estudantes de História da Arte que catalogaram toda a colecção. Nesta, e também na exposição, que apenas inclui 72 trabalhos, há evidentemente um predomínio notável da geração que adquiriu visibilidade nas décadas de 80 e 90, as mesmas que apresentam coincidências importantes em termos de gosto e de abordagem de determinadas questões estéticas e plásticas pelo próprio coleccionador na sua actividade profissional.

Mas não se pense que a selecção de Caetano fica por aqui. Há também peças de barristas populares, uma máscara dos Bijagós, obras modernistas também em qualidade e quantidade assinaláveis (Joaquim Rodrigo, Manuel Lapa, Salette Tavares, entre outros), retratos anónimos oitocentistas, uma pequeníssima gravura e, porque o gosto pela captura da obra perfeita não se esgota em espartilhos de espécie alguma, trabalhos de artistas muito jovens (Diogo Evangelista, por exemplo). O que é surpreendente na exposição, contudo, não reside propriamente na variedade de autores ou obras, mas sim na especificidade da montagem: todas as peças estão organizadas em pares de onde brota um diálogo ancorado ora na similitude formal ou cromática, ora no parentesco de interrogações plásticas (Jorge Martins, por exemplo, surge lado a lado com Dan Flavin, mas um Dan Flavin autor de um desenho precioso, quase escolar, bem longínquo das esculturas de tubos de néon mais do que vistas que o tornaram famoso).

Estes diálogos possuem, por isso, o mérito de permitir ao curador proporcionar a quem vê saltos temporais, civilizacionais, geracionais inusitados. No fundo, trata-se de aplicar à colecção própria um método decididamente contemporâneo que Alberto Caetano pratica não apenas no seu dia-a-dia de coleccionador (tanto nos conta que comprou uma minúscula crucifixão anónima num leilão como que descobriu um Cesariny na Feira da Ladra), mas também em projectos de arquitectura para exposições que assina. Recordamos, nomeadamente, um outro diálogo, instituído entre Sofia Areal e os irmãos Franco no museu dedicado a estes últimos perto do Funchal, onde, por determinação do arquitecto, todas as paredes se coloriram de cores vivas, única forma então encontrada para encontrar uma justaposição significativa nas obras de dois artistas distantes de quase cem anos. Este método justifica também o título escolhido para a exposição, Eu e os Outros, que remete para a subjectividade autoral todas as selecções, todos os saltos temporais, todas as colagens conceptuais, enfim, que foram encontrados para nos surpreender.

Falemos enfim das obras, ou melhor, dos artistas presentes, avisando de antemão que apenas a visita da exposição poderá dar conta da surpresa que toda a montagem encerra. Há contudo peças que se distinguem de todas as outras pelo inusitado da forma ou da matéria com que foram feitas — as mesmas que, sem perder a qualidade estilística que permite a sua identificação imediata com este ou aquele artista, se afastam de qualquer tipo de maneirismo, ao mesmo tempo que nos deixam entrever o método muito próprio com que este coleccionador escolhe cada obra. Pensamos na Antena de Ana Jotta, num A Voz III de Miguel Ângelo Rocha, em O olho no interior da terra de Luísa Correia Pereira, nuns Irmãos III de Rui Chafes, no objet trouvé, depois retrabalhado, de Pedro Cabrita Reis. Sem pretender de todo à exaustão, estas indicações são apenas apontamentos de uma colecção que guarda toda a aura de um conjunto único, irrepetível, inigualável.

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