Confiar nos homens ou descrer dos "impérios"

Ou como a Eneida nos ajuda a compreender os dilemas da Europa.

Quando os textos clássicos parecem estar sujeitos a um difuso e impreciso crivo de utilidade, crivo que forma e deforma o que entendemos por educação, os recentes acontecimentos da nossa Europa unida, em particular os episódios ocorridos nas reuniões do Eurogrupo e na última cimeira de Chefes de Estado dos países do euro, têm-me conduzido à releitura dos últimos versos da Eneida.

É como se uma antiquíssima voz, amadurecida e modelada na corrente profunda da história, reclamasse para si um quadro de inteligibilidade mais amplo, mais luminoso e mais denso, dito sobre a forma de mito.

A Eneida surge como um fruto maduro da pujança política e cultural de Roma. Os meios literários e políticos ansiavam pelo surgimento de uma epopeia que cantasse o destino e a glória de Roma. A magnífica obra civilizadora de Roma, forjada por Augusto, exigia uma voz heróica e límpida que a celebrasse. Pretendia-se para Roma uma voz análoga à de Homero para a Grécia. A Eneida surge como o contraponto romano da grandiosidade e da nobreza dos poemas homéricos e também como a voz autorizada dos valores romanos, da alma que anima a sua missão, a sua obra civilizadora, a sua política.

A narrativa entrelaça o passado mítico e o futuro que há-de vir, já presente na época de Vergílio. O Fatum de Eneias surge envolvido nas vestes proféticas da história de Roma. Da destruição de Tróia às tempestades no mar, da descida ao Hades aos amores de Dido – prefiguração simbólica do perigo cartaginês –, das guerras em solo itálico à fundação da cidade, o destino de Eneias desenha simbolicamente o destino dos Romanos e o do próprio Augusto. Ao cantar o passado, canta-se o futuro; ao esculpir Eneias, esculpe-se Augusto e a dourada época da Paz Romana. Não espanta que a obra fosse desejada política e literariamente.

Amparado e exortado por Júpiter, Eneias atravessa todos os perigos, vence heroicamente todos os obstáculos, cumprindo a sua superior missão: fundar a cidade que será a cabeça de um imenso império. E ao realizar a missão, a sua palavra e a sua espada desenham as qualidades e os valores especificamente romanos: a justiça, a clemência, a piedade. A Grécia, a reconhecida pátria de uma cultura superior, modelara já a palavra, “esculpira estátuas animadas, medira o curso dos astros”, mas a tudo isto, de que era herdeira, Roma acrescentava a justa governação dos povos, derrubando os orgulhosos e poupando os vencidos. Eneias é o “pio Eneias”, e o seu braço é o braço civilizador da clemência e da piedade. Esta é a voz que acompanha o gesto.

E chegamos ao combate entre Eneias e Turno, declinação romana do singular combate entre Aquiles e Heitor. Com ele termina a Eneida. Turno é o inimigo que Eneias merece. É altivo, arrogante, talvez cruel, mas nobre e corajoso. Ele representa o obstáculo decisivo à concretização da missão de Eneias. É uma luta de heróis, grandes na vitória como na derrota – é assim a epopeia e por maioria de razão a epopeia de Roma. Há muito está marcado que Eneias vencerá e a futura Roma nascerá. Turno está já no solo, à mercê do inimigo. Este já lhe rendeu o sopro e o corpo. A sua súplica é apenas esta: que o entregue aos seus, que tenha piedade da velhice de seu pai, à volta de quem rondam já as divindades da morte. Eneias, o pio, o clemente, o homem mais desejoso da paz que da guerra, hesita e suspende o golpe da espada: a clemência vai, coerentemente, triunfar.

Mas aqui nasce a inquietação. Ao ver sobre o ombro do inimigo o cinturão de Palante, o amado companheiro que perecera sob os golpes de Turno, a cólera arrebata-o e, possuído pelas negras Fúrias, trespassa-lhe o peito com a espada – o corpo arrefece no brônzeo frio da morte. A vida, com vago gemido fugiu “indignada para as sombras”. Então e a clemência? E a piedade e a temperança, a dignitas e a auctoritas que fundavam a virtude da justiça política? Seria a retórica civilizadora da alma romana apenas o iludido sonho – por uma vez benévolo – da dormência da razão? Teria sido por descrença que Vergílio pedira para se queimar a Eneida? Confiar nos homens ou descrer dos impérios? A pergunta morde-me o coração e o entendimento.

Sabemos das dificuldades do projecto europeu. Sabemos da rígida dureza dos estados-nações, de como estes solidificaram as suas identidades, os seus interesses mediante séculos de disputas e rivalidades. Ainda assim o projecto europeu era, e é, magnífico e generoso. Sabemos das dificuldades do euro, de como nasceu torto, de como são incrivelmente díspares as consequências para os países que a ele aderiram. Ainda assim o projecto europeu era, e é, magnífico e generoso. Mas poderá ele acolher uma insana cólera castigadora? O adversário, na sua inconsequente jactância, jazia já no solo. Seria, então, de enterrar fundo o punhal, de carregar as exigências, de exigir condições desmedidas, aviltantes e até absurdas – um penhor de cinquenta mil milhões de euros?! Expressa-se assim a resolução de “substituir as rivalidades seculares por uma fusão de interesses comuns”, fortalecendo os alicerces “de uma comunidade mais ampla e mais profunda entre povos há muito divididos por conflitos sangrentos” e a de “lançar as bases de instituições capazes de orientar um destino doravante compartilhado”? Expressa-se assim, no intemperado aço do excesso, o contributo que a Europa quer dar à civilização? É apenas o soluço negro de uma cólera passageira, ou a ave mensageira do intermitente, mas sempre certo, triunfo das Fúrias? Confiar nos homens ou descrer dos “impérios”? A pergunta morde-me o coração e o entendimento.

Professor da Faculdade de Letras de Lisboa

 

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