O crime de enriquecimento injustificado é ilícito

Será que andamos a brincar aos legisladores?

A criação do crime de enriquecimento ilícito ou injustificado chumbou mais uma vez no Tribunal Constitucional.

A ideia até parecia boa e moralizadora já que os portugueses há muito que andam fartos de saber ou de ouvir dizer que há pessoas que têm um elevado património cuja origem se desconhece e que não parece justificado face ao que se sabe das suas origens pessoais e dos rendimentos do trabalho que terão auferido. Nomeadamente pessoas que passaram pela política e pelo sistema bancário.

A irritação dos portugueses com estas pessoas parece saudável já que não resultará da inveja que nos caracteriza, mas sim da convicção de que por detrás dessas riquezas estão actuações ilícitas, naturalmente censuráveis e difíceis de se comprovar. O problema que se punha ao legislador era, assim, como conseguir apanhar nas malhas da justiça esses hábeis cidadãos que enriqueceram e enriquecem sem se lhes conhecer trabalho ou negócios lícitos que o justifiquem.

A tarefa não seria fácil uma vez que se levantavam complicados obstáculos constitucionais tais como a necessidade de respeitar o princípio da presunção da inocência já que parece indiscutível que não cabe aos cidadãos provar a sua inocência quando o Estado os acusa de praticar um crime mas sim ao Estado provar que o cometeram.

É certo que o direito constitucional é uma matéria densa e complexa que exige muito labor e estudo. Muitas vezes está-se no domínio da filigrana jurídica e as certezas não são muitas. As decisões do Tribunal Constitucional, como as do Supremo Tribunal norte-americano, muita vezes consagram os entendimentos e as visões políticas do direito constitucional partilhadas pelos juízes com uma determinada orientação ideológica que não necessariamente partidária.

 Nos EUA a divisão entre os juízes conservadores e os juízes liberais está bem definida, havendo um juiz que ora apoia uma das correntes, ora apoia a outra. O que não quer dizer que não haja surpresas como recentemente ocorreu com a decisão de considerar constitucional uma disposição muito relevante da legislação do presidente Obama sobre a saúde, em que o conservador presidente do Supremo Tribunal votou pela sua constitucionalidade.

Mas um projecto sobre a mesma matéria chumbar estrondosamente duas vezes no Tribunal Constitucional, como agora aconteceu, é uma vergonha. É lamentável que uma das principais bandeiras políticas da ministra da Justiça tenha sido erguida de uma forma tão canhestra – pela própria e pelos grupos parlamentares do PSD/CDS que aprovaram este segundo projecto.

O TC, já em 2012 tinha considerado inconstitucional o projecto de criminalização do enriquecimento ilícito, praticamente por unanimidade, e este novo projecto de lei foi elaborado com intenção expressa de ultrapassar as inconstitucionalidades que tinham sido apontadas ao anterior projecto e que haviam determinado a sua morte.

Parecia, assim, que a ministra da Justiça e os grupos parlamentares dos partidos do governo se iriam munir dos melhores estudos, dos melhores juristas e das melhores propostas. Deviam esses juristas chegar a uma de duas conclusões: ou não é possível, face ao texto da nossa Constituição, a criação do crime pretendido e o governo e os partidos que o apoiam desistiam e não faziam figuras tristes, ou era possível a sua criação, mesmo que de forma discutível, e apresentavam um projecto com pés e cabeça que, pelo menos, criasse alguma polémica no seio do Tribunal Constitucional (TC) dentro da diversidade ideológica dos juízes que o compõem.

Mas não foi nada disso que sucedeu. Apesar de a leitura do acórdão do TC ser seguramente difícil, o que resulta da mesma, é que este projecto é rejeitado por unanimidade e pelas mesmas razões do anterior já que, praticamente, não trouxe nada de novo salvo umas habilidades na sua redacção.

 Este projecto voltava a não identificar devidamente o valor que se pretendia proteger com este novo crime, voltava a não explicar qual era a acção ou omissão que em concreto se pretendia criminalizar, voltava a obrigar os cidadãos a terem de provar a sua inocência. Quantos constitucionalistas trabalharam neste projecto? Pode-se saber os nomes?

Convinha, talvez, que os deputados da maioria governamental tivessem a noção de que não se dá a volta ao TC, com três cantigas. Infelizmente parece que não têm: a deputada do PSD Teresa Leal Coelho, ao saber do novo chumbo pelo TC, em vez de dizer que vai tentar (ao menos) perceber as razões do mesmo e de pedir desculpas pelo mau trabalho de casa, afirmou que “independentemente do resultado das eleições (...) apresentaremos um novo projecto de lei com vista à criminalização do enriquecimento ilícito".

Parece legítimo perguntar: será que o PSD pretende que alguma vez esse crime exista no Código Penal Português ou anda a brincar aos projectos de lei de combate à corrupção para entreter o pagode?

 

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