O projeccionista que era ídolo de adolescente problemáticos e velhos

Ninguém sabe quem é Daniel Knox mas não faz mal: é um ex-estudante de cinema que encontrou a sua voz em baladas de crooner meio decadente. Jarvis Cocker é fã e vocês também deviam ser.

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Este estranho ser passou a vida em Chicago, num velho teatro, por trás da cortina, onde aliás estava quando nos atendeu o telemóvel, porque é projeccionista

É muito possível que não saibam quem é Daniel Knox – a informação sobre ele é mínima, apesar do seu mais recente e homónimo disco estar inteiramente disponível na net e de figuras de culto como Jarvis Cocker e o encenador Robert Wilson serem fãs.

O seu homónimo e recente mini-êxito é irónico: Knox tinha planeado fazer uma trilogia quando, após o segundo disco, resolveu editar um álbum diferente, autónomo, este que agora podeis ouvir. E foi este, não planeado, que deixou muita gente embevecida.

Este estranho ser passou a vida em “Chicago, num velho teatro, por trás da cortina”, onde aliás estava quando nos atendeu o telemóvel, porque é projeccionista. “O cinema está aqui desde 1929, é muito bonito e eu trabalho aqui há muito tempo – faço isto há cerca de 10 anos”, explica Daniel, na sua voz entre o pausado e o hesitante – em disco ele é outra coisa: uma espécie de crooner dos subúrbios, uma garganta possuída por uma força vital. “Não me importava de trabalhar aqui até ao fim dos meus dias”, acrescenta.

Se conseguirem encontrar um dos escassos vídeos em que se vê Knox a actuar, notarão que ele se esconde atrás de um piano. Mas, quando se mudou para Chicago, “aos 18 anos”, o piano não entrava nas contas: ele foi para lá “estudar cinema na universidade”, o que fez “durante um ano” até que se apercebeu “mesmo que quisesse fazer cinema não queria fazê-lo com universitários emproados”. Seja lá o que isso for, nos arranjos de Daniel Knox nota-se que Daniel Knox viu muito cinema.

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Incident at White Hen
Car Blue

E o piano, o magnífico piano onde Daniel Knox cria a magia que se ouve em Daniel Knox? Não riam, mas ele começou “a aprender piano para ganhar uns trocos a tocar em lobbys de hotel”. Até hoje, garante Knox, não sabe “tocar uma nota que seja ou ler uma pauta”. A acreditar nele, toca “com dois dedos de cada vez”.

Este não foi o único emprego incomum que Knox teve quando abandonou o curso. “Houve um período de dois ou três anos em que tive de fazer tudo: fui empregado de mesa num péssimo restaurante mexicano, tratei de cheques, fui guarda-nocturno”. No cinema começou “por tratar das pipocas”. Há um detalhe, nesta história: quando Knox “era miúdo adorava” ir com os seus pais ao exacto teatro em que hoje trabalha. Daniel Knox é um disco sobre a sua terra natal. Digamos que Daniel parece um tipo que precisa de regressar ao passado.

Knox afiança que nunca ganhou mais que trocos “a fazer música”. “Entrava pela porta dos fundos dos hotéis e a única coisa que conseguia era umas gorjetas”. Agora que tem discos já ganha “alguma coisinha”. “Aqui no teatro são simpáticos e têm-me deixado tocar ao vivo de graça, o que é sempre uma vantagem”, diz Knox, que precisa de um agente depressa. Nope, não é brincadeira: ele não tem agente.

Nascido em Springfield, Illinois, Knox descreve a terra como sendo “suficientemente grande para nos perdermos e pequena ao ponto de nos sentirmos encafuados”. É composta de “lojas pequenas e árvores demasiado bonitas para estarem rodeadas de tanto cimento”. As minúsculas lojas de Springfield são uma obsessão para Knox, ao ponto de as usar “como títulos de canções”.

O último disco, então, é “todo sobre a [sua] terra natal”. “Continuo assombrado por aquela paisagem”, explica. Fala numa espécie de pára e arranque em que a um surto de palavras se segue a gaguez dos tipos que não sabem o que fazer da vida. “Não consigo esquecer as cercas de arame e a imensa quantidade de cimento que lá há”, diz, antes de acrescentar que “é um disco sobre decadência urbana, sobre lojas abandonadas, sobre cidades que no fundo são uma espécie de zombie”. Uma daquelas terras que teve vida, indústria e comércio e um dia as empresas foram para outro sítio e ficaram os velhos.

“Quando és miúdo isso marca-te, acredita”, diz Knox num jeito tão de desabafo que só podemos acreditar. Agora ele parece ter encontrado o filão mental que o leva de volta ao disco, de volta à infância, de volta ao que faz ser o que é: “Isto pode soar pedante mas é um disco sobre não perrtencer a lugar algum. Eu cresci sozinho. A andar sozinho. Era um miúdo estranho – tinha esse defeito. A criatividade não era bem recebida naquela terra – a menos que fosses uma miúda que desenhasse flores. Eu fazia filmes. Estava obcecado com os irmãos Marx e com o David Lynch”, explica, antes de dar uma risadinha nervosa. “Se tivesses crescido numa cidade pequena e moribunda percebia que gostar de David Lynch não é exactamente aquilo que te vai integrar na comunidade”.

Posto isto ele conclui: “Eu estava só, meu. E o disco é sobre isso”. Somos tentados a concordar – ele podia tanto estar a cantar sobre desamores ou nabiças (ou prédios abandonados) que, independentemente das palavras, aquele piano, aquelas cordas, cada meticuloso arranjo de Daniel Knox evoca uma tremenda solidão.

“Houve um par de momentos”, ainda Knox não editara disco algum, que foram “cruciais para fazer música”. “Estava a meio dos vintes” quando ouviu Al johnson e Maurice Chevalier. Pensou: “Se eu conseguir fazer alguém sentir o que isto me faz sentir seria fantástico”. Chevalier, diz, “tem uma vitalidade na voz espantosa e canta sobre coisas desagradáveis”. Aqui surge um pequeno momento de imodéstia: “O Al Johnson parece em fogo quando canta”, começa por dizer. Depois atira: “Não pensei em cantar como ele, achei que já sabia cantar assim”.

Mas era tímido. “Já tocava umas melodias, mas não tinha coragem para cantar”. Aliás, ainda hoje fica nervoso quando tem de cantar. “Ainda tenho alguma vergonha”. De modo que “o momento de fazer um disco demorou muito a chegar”, até porque na sua cabeça “ainda queria ser um realizador”, nunca pensara em ser um compositor.

Foi um amigo, John Atwood, que ao ouvir os temas de Knox lhe disse que isto era o que Knox tinha de fazer. “Escrevi as minhas primeiras canções para ele – para ele ouvir. Não tinham nenhuma direcção. Pegava em qualquer coisa e esticava-a o máximo que podia de modo a parecerem canções”. Mas a dada altura começou “a sentir que havia temas comuns: uma canção era sobre o amor e outra sobre a guerra”. Decidiu fazer uma trilogia em que cada disco teria um tema – até que de repente apareceram as canções de Daniel Knox.

“As canções antigas tinham uma espécie de fim natural – tinham de encaixar no tema, na sonoridade. Mas quando este disco começou a aparecer senti a necessidade de algo novo – que não tivesse nenhumas amarras, nenhum guia. Pensei: o que posso fazer com isto? Que canções podem dar as mãos a estas? Fazer um disco é como pôr uma criança no mundo e esperar que façam amigos”, diz ele.

Knox encontrou o que acha ser a sua nova voz – mas há resquícios do velho Daniel no novo Daniel: o disco continua a ter um tema e uma sonoridade definidas e coesas. Simplesmente, é mais bem acabado que os anteriores e coloca-o naquela tradição de crooners como David Ackles ou o Nick Cave dos primeiros tempos dos Bad Seeds.

Ele tem a consciência de que “com este último disco” tocou “em qualquer coisa que é um pouco mais importante do que o que fazia antes” e está “a receber alguma recompensa”. Mais gente vem falar com ele, embora “nunca haja um grande grupo de pessoas” em seu redor. O que há é “cartas de gente muito estranha. É simpático recebê-las, mas não é o caminho para o sucesso”.

Segundo Daniel, são “cartas de gente com 15 anos e às vezes são velhos”, mas ele pode estar a brincar – ao fim e ao cabo é um homem que tem imenso respeito por Larry David. “Talvez seja esse o meu grupo de fãs: adolescente problemáticos e velhos”, diz. Nós rimo-nos, claro. Antes de fazermos um pequeno esgar de desconforto.

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