Apesar de apelo a boicote, Caetano e Gil tocam em Israel

Os músicos brasileiros recusaram cancelar o concerto em Telavive, apesar da campanha liderada pelo ex-Pink Floyd Roger Waters.

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Caetano Veloso e Gilberto Gil foram recebidos pelo ex-presidente israelita Shimon Peres na véspera do seu concerto em Telavive GIDEON MARKOWICZ/AFP

Antes de se apresentarem em Oeiras sexta-feira, Caetano Veloso e Gilberto Gil tocam juntos esta terça-feira em Telavive, apesar dos apelos públicos a que cancelassem o concerto em protesto contra os bombardeamentos e ocupação israelitas em territórios palestinianos.

Os músicos brasileiros, que estão a fazer uma digressão mundial em formato de duo intitulada Dois Amigos, Um Século de Música, recusaram cancelar o seu espectáculo em Israel, apesar dos pedidos vindos de figuras como o Nobel da Paz Desmond Tutu e o ex-Pink Floyd Roger Waters. “Sou apenas um visitante, vim só para cantar”, disse Caetano numa conferência de imprensa em Telavive. Os músicos baianos, cuja oposição à ditadura militar brasileira na década de 1960 lhes valeu a prisão e o exílio em Londres, chegaram a Israel no domingo e desde então têm feito da sua visita um acto público, publicando fotografias dos dois em territórios palestinianos ou ao lado do ex-governante israelita Shimon Peres nas suas redes sociais oficiais.

“Enfrentámos pressão para não vir para Israel e cancelar o show que faremos amanhã, mas decidimos não cancelar, porque preferimos conversar, dialogar”, disse Caetano Veloso. As declarações foram filmadas pela equipa do cantor e o vídeo foi colocado na sua página oficial no Facebook, gerando mais de 400 comentários a favor e contra a postura de Caetano e Gil.

Deveriam Caetano e Gil ter cancelado o concerto em Telavive? A origem da polémica remonta a Maio, quando o fundador e ex-líder dos Pink Floyd, o inglês Roger Waters, endereçou uma carta aos brasileiros pedindo-lhes que cancelassem o concerto de 28 de Julho e citando a resistência da comunidade artística internacional em defesa de Nelson Mandela durante o período do apartheid na África do Sul. “Tal como os músicos não aceitavam tocar em Sun City [resort luxuoso na África do Sul para turistas brancos], seremos cada vez mais a recusar tocar em Telavive. Não há lugar no mundo de hoje para outro regime racista de apartheid”, escreve Waters, que faz parte do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) cuja missão é pressionar Israel para acabar com a ocupação dos territórios palestinianos.

Waters tem feito o mesmo tipo de campanha junto de outros músicos. Em 2014 escreveu a Neil Young e este ano a Robbie Williams e Lauryn Hill pedindo-lhes que cancelassem as suas actuações em Israel. Só Lauryn Hill desistiu, três dias antes do seu concerto, em Maio, alegando que tentara realizar um segundo concerto em Ramallah, na Cisjordânia, mas que a logística se revelara “um desafio”. O concerto de Neil Young também foi cancelado mas por razões de segurança já que coincidiu com uma nova agudização do conflito israelo-palestiniano, em Julho de 2014.

O apelo ao boicote virou uma mobilização na Internet e nas redes sociais. Sob o título Tropicália Não Combina Com Apartheid, foi criada uma petição online dirigida a Caetano e Gil cujo texto repete os argumentos de Roger Waters e que reuniu mais de 12.500 assinaturas.   

Numa entrevista ao Estado de São Paulo no início de Junho, Gilberto Gil afirmou que o concerto se manteria, notando que se as pessoas esperavam dele militância por causa do seu passado, aos 73 anos ele não tem mais a mesma disposição para causas políticas – e além disso, o mundo mudou (o rap, e não a MPB, é hoje a música da contestação, disse). Gil fez questão de distinguir “a posição discutível do Estado de Israel” e “o povo de Israel, que tem uma vida, uma cultura e uma dimensão simbólica”. Sem deixar de criticar Israel – e os bombistas suicidas palestinianos –, defendeu que “há uma situação muito complicada para se tomar um partido único e punir boa parte do povo de Israel, boa parte pacífica e interessante desse povo”. “É complicado simplesmente fazer boicote”, concluiu.

Dias depois, Roger Waters reafirmou o seu pedido, notando que não tinha recebido qualquer resposta de Caetano e Gil. Numa carta aberta publicada na Folha de São Paulo, relatou brevemente a história de dois jovens palestinianos que foram feridos por artilharia israelita enquanto jogavam futebol num estádio da Cisjordânia em Janeiro deste ano. “Jawhar e Halabiya não estarão presentes no vosso concerto em Telavive. No entanto, os homens que os atacaram estão livres para comparecer, se assim desejarem”, concluía a segunda carta de Waters.

Caetano respondeu com uma carta publicada no jornal O Globo a 23 de Junho, dizendo que “é fortemente contra a posição de direita arrogante do governo israelita”. “Eu odeio a política de ocupação, as decisões desumanas que Israel tomou naquilo que Netanyahu nos diz ser a sua autodefesa. E acho que a maioria dos israelitas que se interessam pela nossa música tende a reagir de forma similar à política do seu país”, escreveu.

“Nunca cancelaria um concerto para dizer que sou basicamente contra um país, a não ser que eu estivesse realmente e de todo o meu coração contra ele. O que não é o caso”, defendeu o músico brasileiro, de 72 anos, notando que também cantou nos Estados Unidos durante o Governo Bush apesar de ser contra a invasão do Iraque. “Eu desistiria alegremente de tudo se estivesse seguro de que essa é a coisa certa a fazer”, continua. “Sempre falarei a verdade dos meus pensamentos e sentimentos, e se eu fosse cancelar esse concerto apenas para agradar a pessoas que admiro, não seria livre para tomar as minhas próprias decisões. Vou cantar em Israel e prestar atenção ao que está a acontecer lá.”

A réplica de Caetano suscitou nova carta – e novo pedido para que cancelasse o concerto – de Waters, que considera o músico brasileiro ingénuo por pensar que cantar em Israel pode contribuir para a mudança de mentalidades. “Não, Caetano, tocar em Telavive não vai mover o governo israelita ou a maioria dos israelitas um centímetro, mas vai ser visto como a sua aprovação tácita do status quo.” O ex-líder dos Pink Floyd convida o brasileiro a visitar Gaza ou os territórios ocupados. “Vá e veja por si mesmo, não terá de usar a sua imaginação. A realidade é devastadora para além de qualquer coisa que você possa imaginar”, conclui.

Caetano e Gil seguiram a recomendação de Waters – até certo ponto: visitaram territórios palestinianos, mas mantiveram o concerto. Nas suas contas de Instagram, Caetano, Gil e as produtoras Flora Gil (mulher de Gilberto Gil) e Paula Lavigne (ex-mulher de Caetano Veloso) vêm publicando desde domingo fotografias dos músicos brasileiros no terreno – guiados por ONG, tendo encontros com palestinianos e israelitas, desde mulheres árabes e judias que estão em jejum para protestar contra os ataques à Palestina há um ano ao ex-presidente de Israel Shimon Peres.

Acção de sensibilização para a paz israelo-palestiniana ou estratégia de relações públicas nessa zona acrítica de conforto e de autopromoção que são as redes sociais?

“Tenho muitas dúvidas sobre tema tão complexo”, escreveu Caetano na sua réplica a Roger Waters. O concerto de esta terça-feira está esgotado.

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