A Encíclica Laudáto Sii face ao Declínio do Ocidente

É cada vez mais evidente que estamos perante uma crise ecológica motivada pelo consumo de recursos naturais, pela destruição de habitats e pela mudança climática.

Talvez o melhor modo de começar seja reafirmar o óbvio, ou seja, que a ciência e a tecnologia modernas tiveram a sua origem no mundo ocidental. Foi no Ocidente que os sucessos científicos e tecnológicos geraram a convicção de que era possível manter um progresso perpétuo e de que os eventuais problemas ambientais e de escassez de recursos poderiam sempre ser resolvidos recorrendo a mais ciência, mais tecnologia e mais inovação.

O grande sucesso do paradigma de desenvolvimento ocidental levou-o a ser sistematicamente copiado ou adaptado em praticamente todas as regiões e países do mundo com maior ou menor êxito, e consequentemente à sua globalização. O Ocidente liderado pelos EUA e, principalmente, pelos países primos anglo-saxónicos, continua a conduzir e a controlar o mundo através da imposição do seu sistema financeiro e económico e da imbatível hegemonia militar dos EUA. Continuamos na Pax Americana apesar da violência em várias regiões.

Porém, nem tudo são facilidades. A China, de acordo com estatísticas do Fundo Monetário Internacional, tornou-se nos finais de 2014 a maior economia do mundo, em termos de paridade do poder de compra; a Rússia está na charneira entre o Oriente e o Ocidente, mas não se verga perante este, a União Europeia arrasta-se de crise em crise devido a divergências políticas e culturais insanáveis, e o Médio Oriente está num estado próximo do caos, fruto, em grande parte, dos erros sucessivos cometidos pelos EUA, especialmente pelo Presidente George W. Bush.

Na vertente religiosa, o aspeto notável do cristianismo é ter sido o palco do surgimento da ciência moderna em meados do século XVI, apesar de alguns episódios reativos de que são exemplo Giordano Bruno e Galileu Galilei. São Tomás de Aquino, grande admirador das obras de Aristóteles, foi um dos teólogos que mais contribuíram para compatibilizar a fé e a revelação, como forma de conhecimento, com o conhecimento baseado no uso da razão. A ideia crucial, e genial, comparativamente com outras religiões, foi afirmar que a razão é um dom de Deus pelo que pode ser usada para decifrar as leis da natureza e que estas, por sua vez, nos levam a melhor conhecer Deus.

Na vertente ambiental é cada vez mais evidente que estamos perante uma crise ecológica motivada, principalmente, pelo consumo desenfreado de recursos naturais, pela destruição de habitats e pela mudança climática provocada pelo atual paradigma energético de grande dependência nos combustíveis fósseis. Para além destes factos, há sinais de que esta crise começa a ter uma retroação negativa sobre o desenvolvimento social e económico em várias regiões do mundo.

Na década de 1960, quando a crise ecológica era ainda um tema confinado aos ambientes universitários e de investigação surgiu a curiosidade de procurar as origens do comportamento humano que a gerou. O historiador da Idade Média Lynn White (1907-1987) publicou em 1967 um artigo na revista Science intitulado “As raízes históricas da crise ecológica”, em que defende que elas se encontram nos cânones religiosos judaico-cristãos em que Deus é exterior à natureza, o homem é feito à sua imagem e Deus lhe diz que tem por missão dominar os seres vivos.

Esta visão encontra-se sintetizada nos versículos 27 e 28 do livro do Génesis. Segundo White, o Cristianismo é entre todas a religião mais antropocêntrica. Substituiu-se ao animismo, no qual as árvores, as florestas, as fontes, os ribeiros, rios, lagos e montanhas tinham um espírito próprio de natureza sagrada, que na religião romana tomou a forma do genius loci. Ao extinguir o animismo favoreceu-se implicitamente a exploração indiscriminada da natureza sem preocupação com o “sentir” dos seus seres e elementos.

As religiões orientais — hinduísmo, budismo, taoísmo e xintoísmo —, em lugar de colocar a divindade acima da natureza, adotam uma postura contemplativa e reverencial perante o valor divino das suas manifestações. Porém, a degradação ambiental e a sobre-exploração dos recursos naturais é hoje global, independente das religiões a nível local ou regional, salvo raríssimas exceções. Estamos no domínio da ecoteologia iniciada por White.

São Francisco de Assis (1181-1226) viveu numa época profundamente distinta da nossa, na qual abraçar uma vida de peregrinação e pregação, acompanhada simultaneamente com a prática de uma pobreza material extrema, cativava aderentes e seguidores, o que lhe permitiu criar a Ordem de São Francisco. A extraordinária humildade de São Francisco, que celebrava a pobreza como forma de continuar a obra de Jesus Cristo, levou-o também a respeitar a integridade de toda a criação divina, incluindo as plantas, os animais, as forças da natureza, o irmão Sol e a irmã Lua. Segundo a lenda que se propagou depois da sua morte, terá dito: “Esperai um pouco por mim enquanto vou pregar às aves, minhas irmãs.” Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, fundamentou a sua grande preocupação com os pobres deste nosso mundo cada vez menos equitativo no notabilíssimo exemplo de vida de São Francisco de Assis e na sua defesa dos mais destituídos e desprotegidos.

Desde a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo em 1972, que a Igreja Católica se associou às preocupações com a crescente crise ecológica. Em 1979, São Francisco de Assis foi nomeado santo padroeiro do ambiente pelo Papa João Paulo II. Porém, foi o Papa Francisco, na encíclica Laudáto Sii, que abriu o caminho para uma intervenção firme e inovadora do catolicismo no debate contemporâneo sobre o desenvolvimento e o ambiente. A sua fonte de inspiração foi manifestamente o amor de São Francisco de Assis pelos pobres, pela paz e pela natureza e a sua experiência de vida num país exterior à OCDE.

A encíclica tem sido comentada sobretudo por reconhecer a origem antropogénica das alterações climáticas e por advogar a sua mitigação. Mas o Papa foi mais longe e identificou as razões da insustentabilidade do atual paradigma de desenvolvimento, que designou por “paradigma tecnoeconómico”. O problema encontra-se numa cultura que promove o consumismo insaciável, o desperdício, a sobre-exploração dos recursos naturais, a poluição e a degradação do ambiente.

Diz-nos que a solução é uma mudança profunda a vários níveis — político, económico, social e individual. Reconhece que “não conseguimos ver as raízes profundas das nossas atuais falhas, resultantes da direção, objetivos, significado e implicações sociais do crescimento tecnológico e económico”. Advoga uma ecologia integral para a qual são necessários gestos quotidianos simples que nos “libertam da lógica da violência, da exploração e do egoísmo”. Um longo e notável percurso de reinterpretação da exortação de Deus no mencionado versículo 28 do Génesis: “Frutificai e multiplicai-vos, enchei a Terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a Terra.”

O que mais perturbou os meios dominantes do atual paradigma tecnoeconómico foi o Papa desacreditar a solução do comércio de emissões em que se criam “créditos de carbono”, porque “não permite a solução radical que as atuais circunstâncias requerem”. Não há ambiguidade na mensagem do Papa relativamente àquilo que refere como o atual paradigma tecnoeconómico sem nunca mencionar a palavra capitalismo na encíclica. Porém, não restam dúvidas de que se trata do capitalismo liberal das décadas recentes. Isso ficou bem claro na sua visita de julho deste ano à América do Sul e especialmente no seu discurso em Santa Cruz, Bolívia, a 11 de julho, em que afirmou que não devemos aceitar “um modelo económico que é idólatra, que precisa de sacrificar vidas humanas no altar do dinheiro e do lucro”.

O atual paradigma tecnoeconómico globalizante e de origem ocidental tem profundas responsabilidades na emergência da crise ambiental e nas desigualdades crescentes que se manifestam à escala mundial. Se o Ocidente quisesse controlar e corrigir a dinâmica perversa que criou, haveria sinais claros de mudança. Mas não, pelo contrário: a economia dos EUA está em boa forma e a taxa de desemprego é relativamente baixa (inferior a 6%), o que demonstra que o paradigma funciona regionalmente ou localmente de forma episódica, mas com custos globais crescentes. O Ocidente persiste no paradigma e é essa a razão do seu declínio.

O sinal desse declínio é, por enquanto, apenas político, e manifesta-se tanto nos EUA com na Europa por disfuncionalidades do sistema democrático. Do outro lado do Atlântico, a hegemonia americana está a encontrar os seus limites e isso é politicamente insuportável para uma grande parte dos eleitores, especialmente os republicanos. Na Europa, o caso da Grécia revela inequivocamente o declínio político e a crescente dificuldade em compatibilizar o paradigma tecnoeconómico com a democracia. O Papa tem a clarividência de nos alertar, sensibilizar, indicar um caminho e dar de novo esperança de poder travar o declínio.

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