Relembrando o Horror do Hologasto

Li as opiniões dos comentadores que equiparam a actuação da Alemanha na crise grega com a da Alemanha nazi na II Guerra Mundial e achei um exagero. Julguei que não se podia comparar o incomparável. Mas depois fui estudar história pelos mesmos livros que os comentadores usam e, afinal, pode-se. Não é incomparável. Aliás, já na década de 30 se fazia o mesmo paralelismo, só que ao contrário: para os observadores de então, o recém-surgido nazismo, com a sua sanha genocida, ódio racial e vontade de subjugação de povos, é que era muito parecido com o grande Mal da época. Que, evidentemente, eram as pessoas que emprestam dinheiro e esperam ser pagas. A maldade com que os nazis matavam judeus imitava a maldade com que alguém cobrava uma dívida.

Isso ficou claro na semana passada, com a condenação de Oskar Gröning, o chamado “Contabilista de Auschwitz”. Como descobri (pelos vistos os comentadores já sabiam), o crime macabro foi a contabilidade. Calhou ser em Auschwitz, podia ser em Alcabideche.

Porquê só agora tenho noção disto? Porque, ao longo dos tempos, houve um branqueamento da imagem dos prestamistas. Isso explica, por exemplo, que eu conhecesse o poema de Martin Niemöller Primeiro vieram buscar os socialistas, sobre as perseguições dos nazis, mas só agora tenha lido o original e ainda mais poderoso: “Primeiro vieram cobrar a 1ª prestação. Paguei, mas achei um abuso. Passado logo um mês vieram pedir a 2ª. Obviamente não paguei. Depois, fui pedir mais. Nessa altura já não havia ninguém a quem pedir, pois de cada vez que me aproximava de alguém, desatavam a correr.”

O revisionismo é tão escandaloso que, hoje, qualquer livraria tem Se isto É Um Homem, o relato de Primo Levi sobre a vida num campo de concentração, mas não se encontra em lado nenhum a sua obra maior “Se isto é um homem que cobra dívidas”, sobre o confronto que o opôs a um amigo a quem devia dinheiro e que, por Primo Levi não lhe ter pago, ficou sem lhe falar quase dois meses.

Já para não falar da maior máquina de propaganda do mundo, Hollywood, que produziu A Lista de Schindler mas ignorou “A lista de ThyssenKrupp”, sobre o industrial alemão que pagou as dívidas de centenas de trabalhadores que não conseguiam saldar os seus compromissos e eram aborrecidos por credores que faziam alguma questão em ser ressarcidos.

Felizmente, já há quem questione a excepcionalidade do mal nazi e queira dar a conhecer outras formas, por vezes superiores, de horror absoluto. É o caso de quem já leu o diário de uma adolescente que vivia num sótão de Amesterdão, nos anos 40, apesar de o pai dever nove meses de renda ao senhorio. A jovem chamava-se Anne Ronald:

“Querida Katy, estamos mais à larga desde que os Frank foram levados. Estes nazis são mesmo ruins. Fazem lembrar aquelas pessoas que só emprestam dinheiro uma sétima vez se garantirmos que desta é que vamos pagar. Para já, só arrebanham judeus para os gasearem e incinerarem. Mas qualquer dia começam a exigir responsabilidade orçamental a quem deve dinheiro e pede mais. Isto é perfídia.”

Como disse Hannah Arendt, trata-se da banalidade do malparado.

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