Trump, Corbyn e as democracias

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1. Assistimos hoje, no Ocidente, a fenómenos políticos extremos que confirmam as profundas mudanças globais e a forma como se estão a reflectir na paisagem política das democracias desenvolvidas. O Syriza é apenas um pequeno apontamento. Philip Stephens dedicava a sua última coluna no Financial Times a dois destes novos-velhos fenómenos políticos no reino dos anglo-saxões. Na América, Donald Trump, um multimilionário excêntrico que quase consegue fazer do Tea Party um grupo de gente moderada. No Reino Unido, Jeremy Corbyn, que representa a ala mais anacrónica do trabalhismo britânico e que resolveu entrar na corrida para a liderança do Labour. O problema é que os dois estão à frente nas sondagens. Trump recolhe 24 por cento das preferências dos republicanos, duplicando o apoio ao segundo candidato preferido, o governador do Wisconsin Scott Walker. Corbyn vence facilmente os outros três candidatos a sucessores de Ed Miliband, dois que tentam ficar ao meio (Yvette Cooper e Andy Burnham) e Liz Kendall, que reivindica a herança de Blair. O que é que dizem? O candidato americano diz que os imigrantes latino-americanos são todos violadores, ladrões ou vendedores de droga, a China é o inimigo a abater e as alterações climáticas uma monumental patranha. Acrescentou recentemente que John McCain não é um herói de guerra porque se deixou capturar pelos vietnamitas. Corbyn defende ideias que já foram do Labour nos anos 80, quando nunca ganhava eleições. Quer a nacionalização das empresas estratégicas, o desmantelamento nuclear e o fim da austeridade. Não fala muito da sua oposição à guerra no Iraque porque lembra o seu apoio ao Hamas e o Hezbollah, que classificou de “amigos”.

Na Europa, a dificuldade da social-democracia em encontrar o seu espaço num mundo globalizado é a melhor explicação para a ascensão do populismo, nas suas versões de esquerda ou de direita (aliás, encontram-se muitas vezes no mesmo discurso). É irrelevante, lembra Stephens, que os apoiantes de Trump estejam quase todos entre os americanos de baixa escolaridade. Até agora, nenhum dos outros candidatos lhe respondeu à letra: tenha vergonha. Como é irrelevante que os outros candidatos à liderança do Labour reajam com um ar muito ofendido à candidatura de um “outsider” que nunca chegou sequer à primeira fila da bancada de Westminster. São dois sérios sinais de alarme.

2. O caso do Labour é talvez o mais interessante. Com a queda de Tony Blair, não por causa da “terceira via” mas por causa da política externa, a esquerda do partido viu uma oportunidade para recuperar a influência que tinha perdido. O herdeiro natural de Blair, David Miliband, foi derrotado pelo seu irmão, que resolveu cavalgar a onda da revolta contra o anterior primeiro-ministro e a nostalgia do velho Labour. Teve cinco anos penosos, sempre à procura de um discurso que fizesse sentido contra o Governo conservador-liberal. Não conseguiu. Deixou que o rótulo da falta de credibilidade na gestão da economia, que Blair conseguiu anular, voltasse a colar-se à pele. Não conseguiu uma bandeira mobilizadora, embora tivesse começado por tentar a defesa de uma “classe média espremida pela crise”. A rápida recuperação da economia britânica e a redução acentuada do desemprego acabaram por fazê-lo perder o pé. Falhou em duas questões fundamentais: a batalha pela Europa e o combate à xenofobia, num país que sempre soube integrar o mundo. Com Cameron a render-se, em ambas as frentes, às pressões da ala mais extremista do seu partido e ao discurso antieuropeu e xenófobo do UKIP, Miliband teve medo de enfrentar estes dois desafios de forma convincente. Pela razão de sempre: o receio de contrariar a percepção da opinião pública, pouco favorável à Europa e cada vez mais sensível à presença de muitos imigrantes. Não admira que tenha perdido. O que admira é a forma como se está a travar a batalha pela liderança do Labour, em que um candidato extremista rouba o protagonismo aos outros três.

Convém recordar que o Labour teve sempre, ao longo da sua história, uma forte pulsão isolacionista e esquerdista. Basta olhar para os anos 80 e as propostas de Neil Kinnock para o desmantelamento unilateral do arsenal nuclear britânico em plena Guerra Fria, ou a hegemonia dos sindicatos dentro do partido, com a qual Blair rompeu definitivamente. O Labour perdeu três vezes para Thatcher e John Major, até Blair (em 1994) o ter adaptado às novas condições da economia e do mundo. Três maiorias absolutas de seguida não tiveram o efeito desejado na cultura do centro-esquerda. Blair fez um corte. Os outros três candidatos ainda andam à procura de um espaço.

Como António Vitorino refere na entrevista que publicamos nesta edição, a desigualdade crescente em todas as democracias europeias precisa de uma resposta do centro-esquerda. Que não é fácil. Essas desigualdades são o fruto da globalização, que levou o capital para países em que as condições de fabrico são mais atraentes, graças à mão-de-obra barata. Abriu-se um fosso entre os sectores profissionais altamente qualificados e os novos empregos em serviços de pouco valor acrescentado. O centro-esquerda ainda não encontrou uma forma de contrariar estas duas tendências, nem de conseguir cobrar os impostos suficientes para manter um grau elevado de redistribuição dos rendimentos, pressionado pela concorrência fiscal, inclusive dentro da Europa. Deixou que se acentuasse uma perigosa “corrida para baixo” em matéria de fiscalidade e de benefícios sociais.

3. Em Portugal as coisas não são muito diferentes. O Partido Socialista esteve sempre, por razões diversas, no terreno político do centro. Primeiro, porque era preciso recuperar uma economia devastada pelos excessos do PREC. Mário Soares tratou de o fazer, quando foi acusado de “meter o socialismo na gaveta”. António Guterres foi sempre um companheiro ideológico de Blair. O primeiro governo de Sócrates levou ao limite o pragmatismo. A crise financeira de 2008 e as suas consequências na Europa levaram os mercados a deixar de acreditar na solidez da zona euro, vingando-se nos juros cobrados para o financiamento dos países mais frágeis. Criou-se a ilusão de que só havia uma forma de responder à crise. O problema é que as democracias não podem viver sem alternativa política – seja ela no quadro europeu ou nos extremos.

Hoje, é esse o grande desafio que António Costa enfrenta, para encontrar uma alternativa à ortodoxia alemã, corporizada no actual Governo, que seja compatível com as regras da zona euro. O que é notável é ter resistido a todos os apelos à radicalização do discurso. O que é ainda mais notável é ser criticado de todos os lados justamente por ter resistido. De algum modo, o que os seus críticos quereriam era que esquecesse dessa chatice a que se chama Europa e vergastasse um governo que tem razões de sobra para ser vergastado, em vez de andar a debater estudos macroeconómicos à procura de soluções que se enquadrem no contexto europeu. É um caminho estreito entre o discurso do medo da mudança e as mais variadas formas de populismo exibidas à esquerda. Tem uma vantagem: os “syrizas” estão pulverizados em múltiplos movimentos, cada um reflectindo o ego dos seus dirigentes. Desde a conversão do Syriza aos rigores europeus que assobiam para o lado. Costa conseguiu outra mudança fundamental na constituição das listas. Não é tanto a renovação, mesmo que tenha sido profunda. É o facto de ter ido buscar fora do partido gente muito capaz que não irá para São Bento para se levantar e sentar. Foi uma machadada inédita no aparelho. Ninguém está satisfeito? Se António Costa não estivesse a fazer o que está, não teria valido a pena tirar a liderança a Seguro.

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