O inferno está vazio e os diabos estão aqui

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Repetiam os pais dos jovens assassinados na segunda-feira em Suruç, localidade turca junto da fronteira síria: “Sehid namirin — Os mártires são imortais.” Os mártires são 32 jovens turcos, na grande maioria curdos, mortos por um bombista suicida do Estado Islâmico (EI). As imagens devastadoras do atentado e as cenas de sofrimento no enterro espalharam uma onda de emoção na Turquia. Na quarta-feira de manhã, o Governo fez bloquear o acesso ao Twitter.

Eram 300 jovens que decidiram participar numa caravana humanitária organizada pela Associação de Jovens Socialistas para ajudar a reconstruir Kobani e abrir escolas para crianças. Kobani é uma pequena cidade curda, na Síria, que esteve cercada durante meses, desde Setembro passado, e onde o EI acabou por sofrer uma das mais simbólicas derrotas, graças à resistência dos milicianos curdos e aos bombardeamentos americanos. O primeiro plano de raciocínio é político. Muitos turcos temem que o massacre de Suruç seja um ponto de viragem para a Turquia, significando uma expansão da guerra síria para dentro das suas fronteiras. É um teste ao Governo turco. O presidente Tayyp Erdogan sempre deu prioridade ao combate ao regime sírio de Bashar al-Assad, mantendo uma atitude ambígua perante o EI.

Alguns analistas afirmam que Ancara teme muito mais o fortalecimento de uma entidade curda no Norte da Síria do que a ameaça do EI. Terá sido essa a razão da sua ambígua conduta durante o cerco de Kobani, em que bloqueou durante muito tempo o auxílio aos sitiados.

O EI terá querido enviar uma dupla mensagem. Dizer aos curdos que a batalha de Kobani ainda não acabou. E mostrar a Erdogan que a Turquia é vulnerável aos seus ataques. Note-se que a polícia turca deteve nos últimos dias muitos militantes do EI, para mostrar que o Governo não é cúmplice do terrorismo jihadista. Ancara temerá ainda a chantagem implícita do EI: ataques a estrangeiros em lugares turísticos. Erdogan arrisca-se a ter de rever a sua estratégia na Síria.

O segundo plano é o humano. Todos os mortos têm um nome, têm uma história e o leitor pode ver as suas fotos na Internet. Eram na maioria estudantes universitários, pacifistas e idealistas, que queriam ser úteis. Alper Sapan, de 19 anos, era um objector de consciência: “Não morrerei nem matarei em nome de ninguém”, escreveu no Facebook. Mataram-no em nome de quê? Okan Pirinç era um árabe turco, de 18 anos e religião alauita, que desprezava “todos os sectarismos”.

Nazli Akyürek era estudante de Direito e justificou concisamente o seu dever de compromisso político citando um verso de A Tempestade, de Shakespeare: “O inferno está vazio e todos os diabos estão aqui.” 

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