Grécia: Ano Zero

A grave crise que a zona euro enfrenta tem sido analisada de forma muito detalhada por políticos, sociólogos, jornalistas e economistas, ainda que muitos deles insistam em esquecer a história.

Assim, e porque se queremos “prever o futuro, estuda o passado” (Confúcio), gostaria de recordar uma análise feita por um economista que, tendo nascido em 1883 e falecido muito antes da criação da zona euro, nos pode ajudar a compreender e a perspetivar o futuro da Europa.

John Maynard Keynes escreveu em 1919 um pequeno livro denominado “As Consequências Económicas da Paz”, retumbante sucesso com a venda de mais de 100 mil cópias. Neste livro, simultaneamente, um “panfleto” político que ataca a moralidade do Tratado de Versalhes (tratado de paz da 1.ª Guerra Mundial) e uma análise técnica das suas cláusulas económicas, Keynes refere que o Tratado é “filho dos menos valiosos atributos de seus pais (Clemenceau, Wilson e Lloyd George): sem nobreza, sem moralidade, sem intelecto”. Na sua análise global do Tratado, Keynes identifica um conjunto de cláusulas lesivas dos interesses alemães questionando ainda as avaliações francesas dos danos provocados (6 vezes maiores do que o razoável), bem como a capacidade da Alemanha em pagar as reparações de guerra, propondo, entre outras medidas, a limitação dos pagamentos alemães e a concessão de um empréstimo para a reconstrução alemã. De acordo com Keynes, a imposição de uma “paz cartaginesa”, levaria à ruina da Alemanha e a Europa à crise.

A Alemanha pagou em 1921 cerca de 75% das reparações de guerra devidas nesse ano, continuando a pagar, aquém do fixado, nos anos seguintes (levando em 1923 à ocupação do Ruhr pelos franceses e belgas). Enfrentando sérias perturbações internas, bem visíveis no período de hiperinflação, a Alemanha terá conseguido pagar até finais de 1931 cerca de 17,3% das reparações fixadas inicialmente, pagamentos estes que, ainda assim, tiveram um severo impacto económico com as consequências políticas que todos conhecemos.

Mas o que é que o Tratado de Versalhes e a crise alemã dos anos 20 do século passado têm em comum com a atual situação grega e a crise na zona euro? Julgo que poderemos encontrar, pelo menos, dois pontos em comum. Por um lado, a impossibilidade técnico-financeira de assegurar o serviço da dívida. Por outro lado, as eventuais consequências geopolíticas resultantes da não compreensão dessa impossibilidade.  

Relativamente à impossibilidade da Grécia em assegurar o serviço da dívida e, consequentemente, em fazer cumprir acordos internacionais assentes, exclusivamente, na concessão de mais crédito a troco de reformas, podemos fazer a análise tendo em consideração quatro realidades incontornáveis.

Em primeiro lugar, a Grécia colapsou financeiramente em 2010 com a conivência das instituições internacionais e dos credores. Com efeito, a Grécia endividou-se excessivamente, com a concordância dos credores; não combateu a economia informal, com o beneplácito das instituições europeias; quis aderir à zona euro sem condições para o fazer, com o acordo dos restantes membros; e falsificou as contas públicas, com a ajuda de alguns dos grandes bancos internacionais.

Em segundo lugar, durante o período de resgate as principais variáveis macroeconómicas gregas tiveram um desempenho próximo do registado numa “economia de guerra” com o PIB a cair cerca de 22%, o investimento privado mais de 50%, a taxa de desemprego a afetar mais de um quarto da população ativa e a dívida, apesar do perdão parcial de 2012, a atingir uns insustentáveis 180% do PIB (conforme constatou publicamente o próprio FMI). 

Em terceiro lugar, e mesmo que se assuma que a solvência de um Estado corresponde apenas à capacidade de refinanciar a dívida na data de reembolso da mesma (e não liquidar a dívida), o certo é que, tendo em consideração o atual nível de divida da Grécia, a mesma só seria sustentável se os custos de financiamento fossem negativos (i.e. a taxa de juro que assegura a sustentabilidade da divida em percentagem do PIB teria de ser de -1,2% ao ano!). 

Por fim, e conforme refere Kenneth Rogoff num recente artigo, porque, ao invés do que aconteceu na Grécia (conforme parece ter ficado demonstrado no referendo), os melhores programas de ajustamento estrutural são aqueles em que os governos dos países devedores definem as propostas de alteração de políticas e as instituições internacionais ajudam a desenhar o programa dando cobertura política à sua implementação.

Neste contexto, a não compreensão, por parte das instituições internacionais, da insustentabilidade da dívida grega e da impossibilidade de manter um modelo de apoio internacional assente exclusivamente na concessão de mais crédito a troco de reformas não compreendidas/aceites, tem/terá consequências económicas e geopolíticas severas.

A primeira consequência, já visível, materializou-se na ascensão ao poder de uma força política com uma “natureza maoista-leninista, fortemente anticapitalista e capaz de utilizar na perfeição a dialética hegeliana, retomada por Marx, para aprofundar a contradição da tese e da antítese, com o objetivo único de chegar a  uma síntese revolucionária” (que tão caro custará à Grécia e ao resto da Europa).

A segunda consequência, e que esteve prestes a acontecer nestas últimas semanas, será a passagem de um “corralito”, traduzido em limitações aos movimentos de capitais e aos levantamentos bancários, para um “corralón”, com a criação de uma moeda alternativa ao euro para assegurar as transações económicas com consequente redenominação dos depósitos nessa nova moeda (com perdas superiores a 70%) e o aparecimento da hiperinflação, com as inevitáveis implicações ao nível do produto e do poder de compra.           

A terceira consequência, de natureza e abrangência mais profunda, afetará a Europa sob duas perspetivas. Por um lado, o acréscimo exponencial da instabilidade política numa região cujo equilíbrio geopolítico é historicamente frágil, associado à crescente penetração dos radicais do Estado Islâmico na Europa, terá impacto na arquitetura política europeia com o crescimento dos radicalismos e a defesa de teses que sustentem a “suspensão temporária da democracia” como única forma de resolver os problemas. Por outro lado, alguns dos agentes dos mercados financeiros, depois de esgotadas as “oportunidades” resultantes do colapso da economia grega, procurarão, adentro da zona euro, “novas oportunidades de negócio” e uma delas chamar-se-á, provavelmente, Portugal.

Daqui resulta que a estratégia que a Europa terá de adotar perante a situação grega não passa por insistir, exclusivamente, no modelo de reformas a troco de mais crédito, como o atualmente proposto (posição que, aliás, parece emanar das posições públicas dos responsáveis do FMI e do próprio presidente do BCE). Nesta fase, o que fará mais sentido, se pretendemos verdadeiramente ajudar a Grécia (e ajudar a Europa), é adotar um programa de ajuda humanitária massiva e de reconstrução (em linha com o Plano Marshall), a troco de um conjunto de reformas em que o governo e a população grega acreditem (implementadas com o envolvimento direto no terreno das instituições internacionais), garantindo desta forma a manutenção da Grécia na zona euro e na União Europeia (que independentemente de tudo terão de ser profundamente reformadas).

Em face do caminho percorrido, e da incapacidade dos governos europeus, incluindo o grego, perceberem que quando a política se distancia da realidade o colapso das instituições é inevitável, vem-me à memória o filme neo-realista de Roberto Rosselini (Germania, anno zero), retrato da Alemanha no final da segunda grande guerra mundial, e as palavras do Professor Enning dizendo a Edmund que ”em tempos de tanta dificuldade, deve imperar a lei do mais forte”.

Felizmente em 1945 a Europa percebeu que o ano zero da Alemanha implicava uma abordagem diferente da adotada no Tratado de Versalhes e que não deveria, simplesmente, “imperar a lei do mais forte”.

Receio que, desta vez, a Europa não tenha percebido, com todas as implicações económicas, políticas e sociais que daí resultam, que para a Grécia o ano de 2015 é também o ano zero.

Professor na Universidade Lusíada

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