Emprego jovem

A aposta no ensino profissional e na formação dos alunos pelas empresas pode ajudar a combater o desemprego jovem? Na Áustria a experiência mostra que sim e o país tem hoje a segunda taxa mais baixa de jovens desempregados da União Europeia, logo a seguir à Alemanha. Alunos, professores e especialistas mostram o muito que Portugal pode aprender com ela.

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População empregada com contratos temporários 2014

Fonte: Eurostat

Taxa de Desemprego Jovem 2014

Fonte: Eurostat

Áustria: quando o desemprego jovem é baixo e mesmo assim nem tudo está bem

A Mariahilfer Strasse, a maior rua comercial de Viena, está cheia de gente. Saltam à vista grupos de jovens que entram e saem das lojas, passam de skate e trotineta ou param nas esplanadas, tentando escapar aos 40 graus que se abateram sobre a capital austríaca. As férias escolares começaram há poucos dias. Mas não para todos. Nos arredores de Viena, do outro lado do rio Danúbio, algumas dezenas de alunos continuam a acordar às seis da manhã para assistirem às aulas num dos centros do Jugend am Werk (JaW), um organismo criado em 1945, imediatamente a seguir à Segunda Guerra Mundial, quando foi preciso estruturar a educação e a formação do país.

É lá que se encontra Onkar Singh, 18 anos. Foi encaminhado para o curso de pedreiro da JaW pelo centro de emprego. Deixou a escola com 15 anos, no final do ensino obrigatório. “Nunca gostei das aulas”, diz, enquanto limpa o suor que lhe escorre pela cara. “Sempre quis trabalhar.” O pai é pedreiro e ele também quer ser. “Está-me no sangue”, justifica-se, tentando evitar o olhar trocista dos colegas que o rodeiam. Não fala muito, mas pouco a pouco vai-se entusiasmando e conta que, há umas semanas, ajudou a erguer uma réplica do Taj Mahal na zona do armazém onde nos encontramos e onde normalmente decorrem as aulas práticas. O formador, Andreas Grosse, um alemão com perto de 60 anos, tenta desafiar os alunos com projectos interessantes. É a forma de os cativar para uma profissão que nem todos querem, diz.

O JaW é um dos organismos espalhados por toda a Áustria e que têm protocolos com o serviço público de emprego (Arbeitsmarktservice, ou AMS) para receberem jovens desempregados ou que desistiram da escola e não conseguem encontrar lugar numa empresa para fazerem o tradicional ensino dual, feito nas empresas em articulação com a escola. Esta cooperação é, de resto, a mais importante medida que o AMS disponibiliza em alternativa ao sistema dual. A diferença é que a parte prática é dada em centros de formação como o que Onkar frequenta, onde se recria o ambiente empresarial. Em 2014, 11 mil aprendizes estavam em centros como este, financiados pelos 130 milhões de euros anuais que o AMS reserva para esta medida no âmbito do programa garantia jovem.

Onkar está no primeiro ano. Tal como acontece no ensino dual feito em ambiente empresarial, a semana é dividida entre o centro de formação e a escola: três dias de prática e dois de teoria. Recebe perto de 300 euros por mês, um valor que passará para os 680 euros no terceiro e último ano. Nessa altura poderá inscrever-se no exame que lhe dará o certificado de pedreiro, explica o mestre Andreas. Ao fundo do armazém, junto a uma grande janela, um dos aprendizes do terceiro ano está sentado à secretária de livro na mão. Está a estudar para o exame teórico. De manhã esteve a treinar a construção de uma sanca, um dos exercícios que lhe será pedido no exame prático.

A ideia destes cursos é que os alunos, depois do primeiro ano, continuem a sua formação numa empresa. Em metade dos casos é o que acontece e, quando não é assim, o serviço público de emprego dispõe de apoios para subsidiar os salários dos jovens, tentando convencer as empresas a darem-lhes, elas próprias, a formação prática e a ficar com alguns deles.

Dos 15 alunos que iniciaram as aulas em 2014, já só restam seis. Cinco são descendentes de emigrantes turcos, egípcios e indianos. Só um é oriundo de uma família austríaca. Esta diversidade de nacionalidades reflecte um dos problemas com que a Áustria se debate actualmente: o abandono escolar e o desemprego é mais frequente entre os filhos de imigrantes vindos de países fora da União Europeia (UE) e de meios socioeconómicos mais desfavorecidos do que entre os jovens de famílias austríacas. Como a oferta de trabalho para os que não têm qualificações está a encolher, estes jovens correm o risco de ficar encurralados entre a falta de qualificação e a ausência de emprego.

São problemas semelhantes aos que enfrentam outros países da UE. Porém, em escalas bem diferentes. Basta olhar para os dados globais do desemprego jovem. A Áustria era, no final de 2014, o país com a segunda taxa de desemprego mais baixa da União Europeia (10,3%), a seguir à Alemanha. E, nos anos da crise, chegou a estar abaixo dos 9%. São números que fazem inveja a países como Portugal que, no ano passado, tinha 34,7% dos jovens entre os 15 e os 24 anos sem trabalho.

A principal explicação para estes dados está na economia e na grande articulação com os parceiros sociais. Durante a crise, a Áustria conseguiu manter níveis de crescimento acima da média europeia (enquanto Portugal enfrentou uma recessão) à custa de alguns investimentos públicos feitos pelo governo de coligação liderado pelo chanceler Werner Faymann e de um acordo com sindicatos e empregadores para a redução do tempo de trabalho.

Orçamento “invejável”
Johannes Kopf, responsável pelo AMS austríaco, já perdeu a conta às entrevistas que deu a jornais internacionais para tentar explicar qual é, afinal, o segredo dos números do desemprego jovem na Áustria. Ao longo de toda a conversa (feita por telefone em vésperas de ir de férias) apresenta números e dados, aos quais tem acesso em tempo real no ecrã do seu computador. “Fizemos um grande investimento no sistema de informação. Neste momento, posso dizer exactamente os resultados de cada medida; quantas das pessoas que fizeram uma formação encontraram trabalho ao fim de três meses; quanto ganham e quantas continuam desempregadas”, relata.

Para este responsável, a posição da Áustria nos rankings internacionais é o resultado de um sistema de ensino que tradicionalmente privilegia a via vocacional (quase 80% dos jovens entre os 15 e os 18 anos frequentam o chamado ensino dual nas empresas ou o ensino profissional e só uma pequena parte vai para a universidade), o que torna mais fácil a transição entre a escola e o mercado de trabalho. “Tanto quanto sabemos, esta parece ser a melhor maneira de formar os jovens”, diz.

“Se olhar para os anúncios nos jornais, todos pedem no mínimo um ou dois anos de experiência. Essa é uma das razões para o elevado desemprego dos jovens: as empresas pedem experiência e eles não a têm. Na Áustria, uma grande parte dos alunos não tem de procurar emprego, porque mais de 50% fica nas empresas onde fez a formação”, exemplifica.

Outra razão, acrescenta Johannes Kopf, é que a legislação laboral é flexível ao nível dos despedimentos. Porém, do outro lado desta flexibilidade, reconhece, está um grande investimento em políticas activas de emprego. “Em 2012, as estatísticas dizem que a Áustria gastava 0,179% do seu PIB para combater 1% do desemprego. Portugal, tanto quanto sei, gasta 0,046%”, remata. O próprio AMS tem um orçamento “invejável” de mil milhões de euros anuais.

Em média, um desempregado leva 97 dias até voltar a entrar no mercado de trabalho; se tiver menos de 25 anos demora menos tempo, à volta de 69 dias. Em Portugal, os dados mais recentes do Instituto do Emprego e Formação Profissional apontam para uma média de 396,7 dias para o total dos desempregados e de 161,7 dias para os jovens com menos de 25 anos.

Não é o caso de Raphaael Muster, 20 anos, que procura trabalho há já seis meses. À luz dos critérios austríacos, já é considerado um desempregado de longa duração. Está como uma amiga (que não quis falar com o PÚBLICO), que também procura trabalho e veio inscrever-se no centro de emprego. Embora o AMS tenha várias agências espalhadas pela cidade de Viena, os jovens entre os 15 e os 21 anos têm um serviço específico, o Arbeitmarkservice Jugendliche (centro de emprego para a juventude), situado ao lado da estação de metro de Gumpendorfer Strasse e paredes-meias com um centro de apoio a toxicodependentes.

Enquanto esperam para entrar, Raphaael conta, num inglês misturado com algumas expressões em alemão, que desde muito cedo foi encaminhado para o ensino vocacional. Acabou o curso de tecnologias de informação no sistema dual há seis meses (um dos cursos mais populares entre os jovens), mas a empresa não quis ficar com ele e, por isso, não faz parte dos tais 50% de lerhling (a expressão usada para denominar os jovens aprendizes) que continuaram o seu percurso profissional no local onde fizeram a formação.

Apesar do seu aspecto descontraído, olha para o futuro com apreensão. O que quer fazer? Trabalhar. Vai dar mais um tempo — sair do país talvez seja uma hipótese. Não sabe é se os outros países não estarão em pior situação do que o seu, ironiza. Ali, pelo menos, recebe um subsídio de 800 euros (depende do valor do último salário), pago pelo AMS, com o qual complementa a pensão de invalidez do pai, que era polícia, e o trabalho a tempo parcial da mãe. Em troca tem de provar que procura trabalho e frequentar as formações que lhe são propostas.

Num gabinete do último andar do Arbeitmarkservice Jugendliche, Peter Dominkovits, responsável pelo departamento de emprego, explica que têm cada vez mais casos como este. “No passado, fazia-se a aprendizagem numa empresa e ficava-se lá a vida toda até à idade da reforma. Agora é como em toda a Europa, há uma maior mobilidade das pessoas”, destaca.

Mas o que realmente o preocupa são os miúdos que lhe chegam apenas com o ensino obrigatório ou que nem sequer o conseguiram concluir, situações que estão muitas vezes associadas a contextos familiares complicados e a meios desfavorecidos. Em Viena representam 77% dos quase 13.500 jovens que naquele momento estão inscritos no centro de emprego. “É preciso evitar que entrem num beco sem saída”, alerta Dominkovits. Um dos projectos em curso, e distinguido pela União Europeia, são os chamados Space Lab, locais onde os jovens podem ir para conversar ou participar em projectos de valorização pessoal, tendo direito a um incentivo de dez euros por cada vez que lá vão. A ideia é ganhar a sua confiança, para depois convencê-los a fazer uma formação mais longa, de 16 ou 30 horas, que lhes dará direito a 300 euros por mês.

São apenas alguns exemplos de medidas e apoios, muitos deles criados no âmbito do programa europeu Garantia Jovem, que Portugal também está a desenvolver. Na prática, todas estas medidas contribuem para que os jovens encontrem trabalho, mas também para que saiam das estatísticas do desemprego. “Se tivermos disponibilidade financeira para pôr no terreno medidas muito variadas, pode-se ‘esconder’ muitas pessoas que, de outro modo, estariam desempregadas”, reconhece Peter Dominkovits.

Uma questão de imagem
O sistema de aprendizagem nas empresas, muito comum na Áustria, na Alemanha e na Suíça, tem vindo a ser desenvolvido há mais de 500 anos, recriando a situação dos mestres que recebiam nas suas oficinas os aprendizes e lhes ensinavam o ofício. Muitos dirigentes europeus visitam a Áustria para perceber como funciona e como aplicá-lo nos seus países. O primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho, foi um deles. Esteve em Viena em 2013, numa altura em que se falava na necessidade de alargar as experiências já feitas em Portugal por algumas empresas e associações de empregadores.

“Estamos numa posição confortável, porque desenvolvemos o sistema durante centenas de anos, mas é difícil aplicá-lo noutros países”, alerta o presidente do AMS, Johannes Kopf.

Porém, nem tudo está bem “no país dos certificados” (a descrição é de Dominkovits). Apesar das vantagens e da elevada empregabilidade, internamente o sistema dual sofre de um problema de imagem, sobretudo nas zonas urbanas, e tem de competir com os cursos profissionais oferecidos pelas escolas do ensino regular, num contexto em que o problema demográfico também se começa a colocar. A estes constrangimentos soma-se um outro: é cada vez mais difícil encontrar empresas que aceitem aprendizes.

Michael Landertshammer, responsável pelo departamento de educação da Câmara Económica Federal da Áustria (WKO), diz que há um trabalho a fazer na melhoria da imagem do sistema dual.

“Historicamente, as empresas sabem que é melhor poderem influenciar o que se aprende e como é ensinado, mas queixam-se cada vez mais que os jovens que chegam do ensino obrigatório muitas vezes não sabem sequer interpretar o que lêem. O ensino precisa de reformas, mas nada é mais difícil do que reformar o sistema escolar na Áustria”, diz.

Alexander Prischl, da OGB, a federação que junta todos os sindicatos da Áustria, concorda que é preciso mudar, mas não aceita a avaliação que é feita. “Os jovens não mudaram assim tanto, a economia é que mudou e tornou-se mais exigente. Antigamente, para se ser mecânico de automóveis, tinham de saber mecânica e ponto final. Actualmente é preciso falar inglês para ler os livros de instruções dos motores”, exemplifica.

Os relatórios internacionais alertam para a necessidade de reformas no sistema de ensino na Áustria e têm criticado a separação “demasiado precoce” das crianças consoante as suas notas. Aos dez anos, quando terminam a escola primária, as crianças são separadas entre o Gymnasium, que as prepara para a universidade e que termina com o Matura (o exame que encerra este ciclo de estudos e dá acesso à universidade), e a Hauptschule, que as prepara para o ensino vocacional. No final da escolaridade obrigatória, que é aos 15 anos, já tudo está praticamente decidido, e são poucos os que contrariam o destino que lhes foi traçado aos dez. Entre os aprendizes que terminaram o ensino dual ou profissional só 4% a 5% prosseguem os estudos.

O actual governo comprometeu-se a apresentar um pacote de reformas para o sistema de ensino em Novembro, um trabalho que está a ser feito com a participação dos sindicatos, dos representantes dos empregadores e de especialistas.

O dirigente da OGB reconhece que a mobilidade social é um dos principais problemas que é preciso resolver. Uma opinião que o representante da WKO traduz em números: “Uma das desvantagens do nosso sistema escolar é que se os pais têm uma licenciatura, 80% dos jovens prosseguem os estudos. Se não tiverem, só 40% passam do ensino secundário.”

Outro dos desafios passa por melhorar a imagem do ensino dual, que está muito associado às classes mais baixas. Michael Landertshammer conta que ainda recentemente se viu confrontado com esse preconceito. Tem quatro filhos, dois já estão na universidade e o terceiro deve entrar este ano. A filha mais nova, de 15 anos, comunicou-lhe que talvez quisesse ser chef de cozinha e ele levou as mãos à cabeça. A decisão ainda não foi tomada e para já fica no Gymnasium, que lhe dará acesso ao ensino superior. Depois logo se verá.

Mas também há os que deixam a escola a que em Portugal chamaríamos regular e entram na via vocacional. Foi o que aconteceu com Alex Todorovic, 19 anos, que deixou o ensino secundário sem concluir o Matura e está agora no primeiro ano do curso de desenho técnico no JaW. Fala inglês fluentemente. Era bom aluno, queria seguir arquitectura, “perdeu-se” e deixou a escola. Entrou no curso por iniciativa própria e sente que está “onde devia estar”. Recebe 300 euros por mês e isso deixa-o também satisfeito. Sonhos para o futuro? Os mesmo que qualquer pessoa: um emprego estável, família, filhos. “Ter uma boa vida!”, resume com um sorriso, enquanto volta para o computador e para o exercício em Autocad que o professor lhe passou.

À procura de um futuro
Emprego estável é o que falta a Sophie Kirchner, 25 anos, fotógrafa. Procura, como muitos jovens da sua idade, um futuro que lhe permita ter a profissão com que sempre sonhou. “O meu mantra é fazer o que gosto”, diz enquanto beberica uma limonada, na esplanada do Blue Box, um restaurante vegetariano numa rua paralela à Mariahilfer Strasse.

Natural da região de Salzburgo, terminou o Gymnasium, fez o Matura e foi seis meses para a Austrália trabalhar como au pair. Quando voltou tentou entrar no curso de fotografia da Universidade de Viena. Sem sucesso. Eram 30 vagas disponíveis e uma rigorosa selecção de portfólios.

Sophie acabou por fazer o curso na Die Graphische, uma escola superior, e nos últimos dois anos tem intercalado reportagens fotográficas para revistas de desporto, trabalho em cafés e lojas de roupa, um estágio na Alemanha num estúdio de fotografia. Há uns meses decidiu concentrar-se no que realmente gosta. Faz trabalhos para revistas e é assistente de uma fotógrafa. De uma coisa tem a certeza: não quer transformar-se em fotógrafa de casamentos.

Está registada como trabalhadora independente e, como o seu rendimento não excede os 30 mil euros anuais, não paga impostos. Vive em Viena num apartamento dos pais e, por isso, também não tem de se preocupar com uma renda para pagar. O pai é médico e a mãe é assistente dele, mas fez um curso de moda. Neste momento não pensa num prazo. “Se tens uma casa onde morar é mais fácil não pensar num deadline.” Não fecha nenhuma porta. Por agora, gosta de estar em Viena e acabou de lançar um site para dar a conhecer o seu trabalho. Sair para outro país é também uma hipótese.

Embora o melhor seguro contra o desemprego seja ter uma qualificação elevada, entrar na universidade na Áustria não é fácil. “É difícil, mas temos licenciados com elevados standards de qualidade”, justifica Johannes Kopf. “A universidade não é solução para toda a gente. Há pessoas que são especialistas em trabalho manual. É preciso um grande equilíbrio entre a formação superior e a formação intermédia” realça.

Simon Kamp é o primeiro a tirar uma licenciatura na família. Tem um mestrado em Ciência Política, uma área onde a possibilidade de encontrar emprego é, tal como em Portugal, difícil. Simon teve sorte e contactos. Não levou mais do que dois meses até ter duas propostas de trabalho em cima da mesa e é assessor do Parlamento austríaco. Sempre trabalhou nas férias, mesmo enquanto estudava. Essa é, de resto, uma característica que os austríacos gostam de destacar. A relação que têm com o trabalho e a necessidade de ter um trabalho.
 

Sophie Kirchner, 25 anos, é fotógrafa e trabalha por conta própria. O seu objectivo é conseguir viver da fotografia
Raphaael Muster, 20 anos, fez um curso de tecnologias de informação no ensino dual e está desempregado há seis meses
Onkar Singh, 18 anos, frequenta o primeiro ano do curso de pedreiro num centro de formação financiado pelo Estado