O ontem foi hoje

Todas as críticas são bem-vindas, mas esta é mais ainda.

Na semana passada, o investigador e bolseiro Jorge Pais de Sousa criticou-me neste jornal por proceder a um exercício de “revisionismo” sobre Afonso Costa, líder republicano da primeira metade do século XX e governante de Portugal na Iª República.

Em causa estava uma crónica na qual assinalei o centenário do episódio em que Afonso Costa saltou de um carro elétrico (e sofreu um traumatismo craniano) ao julgar-se vítima de um atentado, e aproveitei para lembrar que, com Afonso Costa, Portugal já tinha tido um ex-primeiro ministro detido ao chegar ao país vindo de Paris, acusado de corrupção e preso num forte no Alentejo, corria o ano de 1917. Jorge Pais de Sousa diz que a imagem que passa de Afonso Costa na minha crónica é a de um cobarde e um corrupto.

Ora, uma crónica de última página é um meio muito escasso para produzir uma avaliação cabal, ou sequer uma alusão mais ou menos profunda, a uma personagem histórica de vida agitada e atividade política rica. Até escrevi que Afonso Costa tinha toda a razão para temer um atentado, ao contar que menos de um par de meses antes outro ex-primeiro ministro, João Chagas, também tinha sido atacado, tendo perdido uma vista. Se fui injusto para com Afonso Costa, talvez Jorge Pais de Sousa esteja a ser injusto para com a minha crónica.

No fundo do seu argumento, contudo, o meu crítico tem razão. Portugal vive cortado em relação à sua própria história política. Culpo por isso o corte que produziu na nossa memória coletiva a ditadura, com os seus 48 anos de antiparlamentarismo e cultura anti-partidária. Para o Estado Novo, qualquer dissensão política era um risco de divisão para a unidade nacional. Toda a normal dinâmica de oposição e evolução, e todos os momentos de rebeldia e revolução, tendiam a ser enquadrados como uma “confusão” que ia contra a alma nacional.

O resultado é que, ao contrário dos norte-americanos que conhecem bem a história dos seus presidentes, os brasileiros que aprendem na escola as diferenças entre Império e República Velha e Estado Novo de Getúlio, ou os franceses que conhecem bem a sucessão das suas cinco repúblicas, os portugueses conhecem bem apenas os atores políticos do pós-25 de Abril, e para trás os reis e heróis semi-lendários. Sobre o século XIX e início do XX, épocas profundamente políticas, há um esquecimento coletivo que só é perfurado por alguns estudiosos e curiosos.

Jorge Pais de Sousa menciona a ignorância sobre o pensamento socialista de Afonso Costa, e está correto. Também me surpreende como sabemos pouco do olhar dos políticos da Iª República para a Grande Guerra, para lá dos interesses táticos imediatos. Os intelectuais europeus de ambos os lados da guerra, bem como os pacifistas, viram o conflito como um momento-charneira na civilização humana. E os portugueses, não? O que eles pensaram então não tem importância hoje? Claro que tem.

Todas as críticas são bem-vindas, mas esta é mais ainda. Porque nos leva a pensar que desconhecemos o nosso passado por nossa conta e risco, e que precisamos dele hoje mais do que nunca. Ou, pelo menos (para não ser revisionista) como sempre.

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