Um protagonista em agonia

Herói, traidor, corajoso, cobarde, digno, vil, charmoso, patético, simpático, tontinho, inteligente, estúpido, calculista, ingénuo, visionário, louco, leão, cordeirinho, vitorioso, derrotado. A lista de atributos de Tsipras vai continuar. Morto ou vivo.

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Das cinzas da União Europeia, ou melhor, da “União Europeia”, quer dizer, da “‘União Europeia’” (esta ““‘União Europeia’”” vai levar com aspas em cima até confessar que não passa de grande mentira), irá nascer o quê? Das cinzas da Europa deverá nascer um novo mito. Ou então não vai nascer. A gente sabe lá, o que é que aconteceu entre o fecho desta página de jornal e os últimos segundos em Atenas, enquanto a lemos? Está lá o divino Parténon em mármore, cá em baixo a lojeca de sandes ainda tem carne no espeto? Em Berlim, continuam a comer-se boas salsichas, senhora Merkel, senhor Schäuble? Os contribuintes alemães continuam a pagar os preguiçosos do Sul? Boa ideia a vossa de pôr a Grécia cinco anos fora do euro. Claro que ideia é contar em anos de Plutão, cada volta ao Sol dura 248,5 anos terrestres: dá mais tempo de Grécia fora do euro do que um Reich tem mil anos. Esta semana, com a sonda New Horizons, temos fotos nítidas do planetinha gelado nos confins do sistema. Plutão também foi planeta, depois baniram-no uns tempos, mas voltou à “união solar” como planeta-anão. Pagou juros astronómicos, mas conseguiu. Qual é o problema dos gregos?

Já agora, porque não pôr antes a Alemanha cinco anos de fora do seu ideal de Vingança sobre povos inteiros? Uma ideia bonita para comemorar os cem anos da I Guerra, os 70 anos do fim da II Guerra e os 15 anos do início do outro desastre, o euro.

Alexis Tsipras: o homem que assinou um acordo no qual não acredita porque lhe encostaram “uma faca ao pescoço”. Que, antes, achou boa ideia pôr o povo a responder a questões vitais com um referendo. O protagonista da peça perguntou ao coro o que ele acha da vida, mas veio o deuteragonista (a segunda personagem numa tragédia), a Alemanha, que vingou o atrevimento. A Grécia teve de aceitar uma punição cruel, um acordo recessivo que não tem qualquer hipótese de funcionar económica, financeira e socialmente, como toda a gente sabe.

Tsipras, o protagonista, entrou em agonia. Quer dizer “luta suprema”. O momento em que alguém se debate com a morte. Como dizia Sófocles, que inventou o teatro com duas personagens em palco: “Porque o tempo do ser vivo é breve, mas sob a terra o morto escondido vive um tempo eterno.” Também disse, em antecipação do sonho da Europa Unida: “Nenhuma mentira envelhece no tempo”.

Em resumo, os grandes mistérios da ““““‘União Europeia’”””” e das suas “maratonas negociais” serão estudados, nos milénios futuros, como hoje estudamos os mitos gregos. São contos confusos mas graves.

E por falar nisso: está um bocado farto de comparações entre as histórias da Grécia Antiga e a realidade contemporânea, não está? É que já não se pode, pois não? Tsipras seria um astuto Ulisses que imaginou o cavalo de Tróia mas a coisa correu mal e não sei quê, conversas que já deram o que tinham a dar, vamos parar com estas secas, não é? Claro que sim.

Bom, só mais algumas, que isto tem a sua graça.

Advertência de cinema e série de televisão: qualquer semelhança entre as personagens e factos dos mitos e o senhor Tsipras e o senhor Schäuble são meras coincidências.

Mito de Alexis Tântalo: o rei da Frígia (noutras versões, da Syrizia) resolveu testar a omnisciência dos deuses e roubou os manjares divinos, como o néctar e ambrosia, que dão a imortalidade. Depois, ofereceu um festim em que lhes deu a comer o seu filho Pélope Varoufakis, com quem se incompatibilizara. Quando Schäuble, ai, quando Zeus se apercebeu disto, Tântalo foi lançado ao Tártaro, que é mau para os dentes e para as máquinas de lavar Siemens e Bosch. Doido de fome e de sede, com os bancos fechados há semanas, o rei desafiador viveu para sempre em suplício, mergulhado em água até ao pescoço (no sítio em que se espetam as facas). Quando baixava a cabeça para beber, a água escoava-se, quando estendia os braços para os frutos em cima (da política agrícola comum), estes afastavam-se com o vento. Em suma, algo aparentemente tão próximo é inalcançável. Tão perto e tão longe. Mais do que uma tragédia, uma chatice.

Mito de Prometeu Tsipras: o titã astuto e inteligente, farto de ver um Zeus rancoroso em cadeira de rodas a tratar mal os homens, devolveu o fogo à humanidade. Isto é, o conhecimento, as artes, a vontade de viver, a possibilidade de não estar condenado a pagar dívidas e gorduras de boi aos bancos toda a vida. Criou com isto maus fígados aos alemães, que reuniram 18 deusinhos em Bruxelas e o condenaram a ficar preso a uma rocha. Todas as manhãs uma águia vem comer o fígado de Prometeu (o nome quer dizer Antevisão, mas anteviu mal), e todas noites o órgão lhe renasce a uma taxa que vai para os 15 por cento nas maturidades mais longas. Ou mais, ou mais, depende da reacção das bolsas.

Mito de Sísifo: o mais astuto dos mortais conseguia sempre enganar a Morte e Merkel, até que um dia foi posto a carregar uma pedra monte acima e, chegado ao cume, sem qualquer explicação dos credores e investidores, a pedra rola sempre por ali abaixo, quase arrastando Varoufakis, que felizmente tem a mota ligada. Significa todos aqueles esforços infinitos que não levam a lado nenhum, isto é, a dívida da Europa do Sul à “““““‘União Europeia’”””””.

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