Um final triste

O Parlamento fecha a legislatura da pior maneira possível.

Depois de quatro anos em que os deputados à Assembleia da República aprovaram os mais duros Orçamentos do Estado da democracia portuguesa. Depois de quatro anos caracterizados pela aprovação do Tratado Orçamental, dos cortes salariais, dos cortes nas pensões, das alterações fiscais, das novas leis laborais, processos legislativos que, a seu modo, transformaram a cara do país. Na ponta final dos trabalhos parlamentares, o país foi brindado com um processo enviesado, cobarde e dissimulado com o qual alguns deputados do PSD e do CDS tentaram fugir entre os pingos da chuva das consequências política de debaterem e votarem de forma transparente a iniciativa legislativa popular sobre aborto.

É preciso ter o rigor de dizer alguns e não lançar acusações sobre o todo das duas bancadas, até porque é perfeitamente admissível que haja deputados da maioria que se vão demarcar desta manobra e votar contra ela em votação final no plenário.

O processo começou mal. Em conferência de líderes presidida por Guilherme Silva, vice-presidente da Assembleia do PSD, foi decidido, por unanimidade, ignorar a iniciativa legislativa popular dinamizada por activistas anti-despenalização do aborto como a antiga deputada independente pelo PSD Isilda Pegado. Ou seja, depois de durante anos, décadas mesmo, o Parlamento ter sido acusado de não ouvir os cidadãos, quando estes usam os escassos mecanismos que existem para serem ouvidos, a conferência de líderes, burocraticamente, decide atirar para o “caixote dos esquecidos” uma iniciativa popular.

É claro que a presidente do Parlamento, Assunção Esteves — que se destacou na campanha a favor do “sim” no referendo de 11 de Fevereiro de 2007 , quando de regresso a Lisboa, só podia anular a decisão patrocinada pelo seu vice e obrigar ao agendamento do diploma, o qual tem toda a dignidade parlamentar de ser devidamente debatido e votado como qualquer outro.

Só que a cobardia intelectual e política de alguns deputados da maioria levo-os a tentar encontrar subterfúgios e artimanhas parlamentares para dar o dito por não dito, chumbar a lei popular, mas não o fazer formalmente logo e fazer até de conta que aproveitam alguns aspectos a que classificam de mais civilizados, quer dizer, menos trogloditas. Assim, primeiro apresentaram a debate um diploma em que eram introduzidas taxas moderadoras e optaram por fazer baixar tudo a comissão sem votação. Isto para não serem confrontados com a necessidade de, pelo voto, separar águas sobre o que os deputados pensam sobre este assunto.

Agora, tentam até à votação de quarta-feira encontrar novas formas de ficar bem com Deus e com o Diabo e construíram uma nova lei que copia outra parte da iniciativa popular, onde são introduzidas consultas obrigatórias de aconselhamento às mulheres que abortam com carácter obrigatório, quando a lei já prevê consultas, bem como se obriga os médicos objectores de consciência a acompanharem os casos. Tudo para, de forma dissimulada, tentarem fazer de conta que chumbam a iniciativa legislativa popular, enquanto ao mesmo tempo fazem de conta que a aprovam. Num jogo em que, tristemente, os responsáveis por esta manobra, julgam que enganam alguém, mas em que se enganam só a eles mesmos na sua pacóvia soberba parlamentar.

É evidente que a intervenção médica para abortar pode pagar taxas moderadoras, como qualquer situação médica. Também não se questiona o direito de os cidadãos conservadores e que ainda hoje não se conformaram com a vitória da despenalização no referendo de 11 de Fevereiro de 2007  apresentarem uma iniciativa legislativa, por mais que se discorde do seu conteúdo.

Aliás, no que toca ao conteúdo desta iniciativa legislativa popular no domínio da Liberdade Individual, dos Direitos Humanos, da Igualdade de Género não há mais a dizer do que foi dito pela primeira responsável governamental pela Igualdade de Género em Portugal, a antiga secretária e Estado de António Guterres, Maria do Céu Cunha Rêgo, em artigo de opinião no PÚBLICO. (07/07/2015) Basta apenas perguntar se em alternativa à assinatura da ecografia, não preferem ditar para a lei que a mulher que aborta passe a ter um número tatuado no braço ou, quem sabe, uma estrela de pano colorida na lapela.

Mas regressemos ao espectáculo parlamentar. E neste plano a questão que se coloca é a de saber se a cobardia política compensa, se a falta de transparência parlamentar dá frutos? E se os jogos e joguinhos de dissimulação política irão compensar politicamente e os autores desta manobra de dissimulação irão ser compensados nas listas eleitorais da maioria?

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