O som das noites suadas de Bamako chama-se Songhoy Blues

Anunciados como “o futuro da música do Mali”, os Songhoy Blues são o mais recente fenómeno do país de Ali Farka Touré a merecer um entusiasmo generalizado. Chegam ao Festival Músicas do Mundo, em Sines, na próxima quinta-feira.

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Os músicos dos Songhoy Blues, refugiados internos, encontraram alívio em Bamako ANDY MORGAN

“Nem cigarros, nem álcool, nem música”, avisaram Garba Touré. “Se te voltamos a apanhar com uma guitarra serás severamente castigado.”

Garba nunca fumou nem demonstrou alguma vez um entusiasmo especial pela bebida, mas a ameaça dos radicais islâmicos do grupo Ansar Dine – que espalhou o terror no norte do Mali, em 2012, com a destruição de valioso património e a imposição de uma sharia (lei islâmica) extrema –, a ameaça de ser punido pela sua ligação à música, absolutamente vital para muitos malianos, foi quanto bastou para fugir da histórica cidade de Gao, junto ao rio Níger, onde nasceu e viveu durante a adolescência. “Fizeram-me um ultimato”, conta Garba ao Ípsilon, “e prometeram queimar a minha guitarra. Sei que na minha região puniram muita gente”. Tomado pelo medo, apanhou um autocarro para Timbuctu e depois outro para Bamako (onde estudava biologia molecular), com uma guitarra escondida no meio das roupas, aterrado por poder ser descoberto nalgum posto de controlo. Mas nada de anormal se passou na viagem de 1.190 quilómetros entre as duas cidades.

Chegado a Bamako, Garba começaria, sem o saber, a preparar uma vitória sobre a situação, repleta de ironia (sem um gosto de vingança, porque não é disso que se trata). Se foi por pretenderem silenciar a sua música que se viu obrigado a fugir de Gao, foi o resultado dessa ameaça que acabou por conduzir à formação dos Songhoy Blues, o mais celebrado novo fenómeno da música maliana, dado a conhecer ao mundo com a bênção sagrada de Damon Albarn, que os chamou para o seu projecto Africa Express e lhes possibilitou o baptismo de estúdio. Em Bamako, foram precisos apenas alguns dias para que Garba se juntasse a Aliou Touré e Oumar Touré (sem qualquer parentesco) e o grupo começasse a tomar forma. “Houve um casamento na família do Aliou”, relata Garba, “e como os casamentos em Bamako se celebram aos domingos [já o aprendemos na canção de Amadou & Mariam, Dimanche à Bamako] e toda a gente que faz música se conhece, juntámo-nos para fazer esse casamento”.

Os três já se conheciam de outros tempos, já tinham tocado juntos, e o reencontro em Bamako foi apenas a confirmação de um percurso que tinha já, ainda que de forma pouco consequente, começado a gizar-se. “As pessoas gostaram e começaram a pedir o nosso contacto e a chamar-nos para outros encontros sociais e outros casamentos”, diz o guitarrista do grupo que, aos poucos, ia deixando a biologia molecular em repouso. Aos domingos juntaram então as sextas-feiras. Convidados a tocar como banda residente num pequeno clube de Bamako, trataram de recrutar o único não-Touré do grupo, o percussionista Nathaniel Dembélé. “A partir desse momento, começámos a tocar no clube todas as semanas, até às três da manhã, quatro ou cinco horas de animação. Foi assim que o grupo começou a crescer.”

Os concertos nesse maquis (nome local para os pequenos clubes de música) não demoraram a gerar um culto muito específico. Ao redor da música dos Songhoy Blues começou a juntar-se um grupo de refugiados, tal como eles fugidos do Norte do Mali e que usavam a música para se ligar à terra de onde se tinham visto obrigados a fugir – “tocávamos músicas dos Tinariwen e de Ali Farka Touré e as pessoas ficavam felizes porque pensavam no Norte, era música que lhes fazia muita falta”, diz Garba. Farka Touré, como continua a acontecer para quase toda a música de guitarras nascida no país, dos mandé aos songai e aos tuaregues, permanece uma referência nuclear. “É o nosso grande ídolo da música”, confessa Garba, sem revelar que o seu pai (também chamado Oumar Touré) foi percussionista do mítico fazedor dos “blues do Mali”.

O facto de Farka Touré e Tinariwen fazerem parte do reportório dessas suadas e populares sextas-feiras é sintomático da sonoridade que os Songhoy Blues acabaram por criar e que, apesar de uma assumida influência colhida também junto de Jimi Hendrix, John Lee Hooker, BB King ou Carlos Santana, não denuncia em excesso o vai-vém da travessia dos blues a caminho e de volta do Mississípi. Hendrix, que se pode intuir em Soubour, aparece como se tivesse sido já anteriormente processado precisamente pelo rock tuaregue (Tinariwen, Tamikrest, Terakaft, Tartit…), enquanto Al hassidi terei e Nick antes parecem conter ecos de Led Zeppelin ou Chuck Berry. Mas é em temas como Irganda, a destilar uma energia de inequívoco fulgor das margens do Níger, que a música dos Songhoy Blues toma um caminho mais incendiário no seu disco de estreia, Music in Exile, assumindo um rock que, a espaços, lembra igualmente as liberdades modernas da também maliana Rokia Traoré.

Soubour
Al Hassidi Terei

Na Maison des Jeunes
Esta sonoridade não demorou a atear entre o público de Bamako. No espaço de meses, os clubes eram já insuficientes para a fama local dos Songhoy e a banda teve de rumar para salas mais espaçosas que não deixassem multidões à porta, desesperadas por um buraquinho mínimo onde se conseguissem enfiar. Transformados em súbitas estrelas locais, os Songhoy tinham então uma pequena corte feminina que os seguia, gritava pelas suas canções e gravava-as com o telemóvel nas primeiras filas dos concertos. Não espantou, por isso, que quando a equipa do projecto Africa Express fez, ainda em 2012, um levantamento do que se passava musical em Bamako, com vista à inclusão de novos artistas na compilação Maison des Jeunes, o produtor Barou Diallo tivesse sugerido os Songhoy Blues. Foi depois o vocalista Aliou Touré quem ligou a Marc Antoine Moreau (o homem que lançou Amadou & Mariam internacionalmente) com o intuito de apresentar o grupo, acabando convocado no mesmo telefonema para, no meio de muitos outros jovens músicos malianos, mostrar as suas canções. O entusiasmo da delegação do Africa Express foi imediato.

Passadas escassas semanas, quando a comitiva liderada por Damon Albarn para empreender novo encontro entre músicos africanos e ocidentais aterrou em Bamako, os Songhoy Blues foram convidados a seguir para estúdio e registar Soubour com Nick Zinner, músico dos Yeah Yeah Yeahs. O tema acabaria por destacar-se como o grande estandarte de Maison des Jeunes e fez deles um nome obrigatório no circuito da world music. Estreiam-se agora em Portugal, na próxima quinta-feira, como um dos cabeças de cartaz do Festival Músicas do Mundo (FMM), em Sines.

Naturalmente, para os Songhoy, Nick Zinner não passava de um nome que soava estranho e Damon Albarn não lhes provocava uma indiferença menor. “Só quando fizemos um grande concerto no Royal Albert Hall é que descobrimos os Blur e só nos Estados Unidos, quando tocámos com o Nick Zinner num grande estádio, é que percebemos quem ele era. Foi preciso irmos a Londres e aos Estados Unidos para termos consciência de que eram pessoas importantes na música”, conta Garba.

Zinner e Marc Antoine Moreau voltaram a juntar-se aos Songhoy Blues para a produção do seu álbum de estreia (Albarn participa com segundas vozes), Music in Exile, lançado já este ano pela Transgressive Records. Desde então, tornou-se corrente na Europa chamar ao grupo “o futuro da música do Mali”, epíteto pomposo que provoca gargalhadas a Garba Touré. Afinal, aquilo que fazem está tão profundamente fundado nos exemplos de Salif Keita (igualmente presente nesta edição do FMM) e da sua Rail Band, Ali Farka Touré e Tinariwen que a ideia de futuro lhes parece quase cómica. “Mas claro que fazemos parte de uma geração de novos músicos do Mali e representar a música do nosso país é sempre um grande orgulho para nós”, admite.

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ANDY MORGAN

Music in Exile oscila entre dois exílios distintos. Há um exílio interno, de quem teve de deixar a sua região-natal para procurar refazer a vida noutro ponto do país, encontrando na música um elemento soberbo de comunhão entre os refugiados; mas também um crescente exílio possibilitado pelas fronteiras destrancadas por obra do Africa Express. De tal maneira que hoje, por cada semana passada no Mali, os Songhoy Blues estão três ou quatro meses fora, empurrados por uma agenda de concertos impressionante para um grupo que apenas há dois anos saía da sua concha.

E, uma vez mais, desponta a ironia. Com um cancioneiro que canta em songai “as inquietações da nossa sociedade”, como defendem – da conservação das florestas e da migração para as grandes cidades à necessidade de erradicar doenças que se prolongam em demasia no país e à crença de que a educação é o caminho para um Mali menos permeável a infiltrações daninhas como a do Ansar Dine , a sua disseminação pelo mundo fora perde algum do impacto que a mensagem poderia conter. Mas essa é também uma característica fundamental dos Songhoy Blues – esta música, apesar de contaminada por vícios do rock ocidental, continua a ser fatalmente maliana.

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