Representação, interpretação

Uma reflexão inultrapassável sobre o poder das imagens

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Toda a obra de Susan Sontag é atravessada pela questão da “representação” do sofrimento humano DR

Durante o cerco a Sarajevo, nesses terríveis anos de guerra na Bósnia, entre 1992 e 1996, a filósofa americana Susan Sontag (1933-2004) visitou a capital sitiada e aí viveu, enquanto levava à cena, à luz de velas, a peça-fetiche de Samuel Beckett, À Espera de Godot.

Os seus detractores acusaram-na de oportunismo, mas os apoiantes louvaram o empenho e a coragem de mostrar quão forte é a cultura perante o horror. Muito para além das opiniões de uns e outros, a experiência serviu a Sontag para aprofundar ideias sobre a “representação” do sofrimento humano, um tema que atravessa toda a sua obra. Desde a altura em que publicou a colectânea de ensaios Contra a Interpretação(1966), o caminho foi longo, tortuoso, amiúde pontuado por opiniões contraditórias; e se, nos anos 60, escreveu que a interpretação (a abundância excessiva de significados) era “a vingança do intelecto contra a arte”, advogando uma “liberdade do vocabulário descritivo”, mais tarde, nos textos que integram Sobre a Fotografia (escritos entre 1973 e 1977), avançou com o argumento de que a proliferação de imagens fotográficas contribui para o aumento do cansaço no olhar do espectador, levando-o a nivelar ou a banalizar o seu significado intrínseco. Pelo caminho, não se escusou de criticar o “cinismo estético” de, por exemplo, Diane Arbus e Andy Warhol, “ o sacerdote dos deleites da apatia”, que, segundo ela, preferiu criar “arte” a partir de imagens de desastres, mencionando a guerra apenas uma vez, na gravura com o cogumelo atómico de Hiroxima.

Em Olhando o Sofrimento dos Outros, o seu último livro, (que surge agora numa reedição portuguesa com algumas alterações), Susan Sontag virou-se decididamente para a análise da forma como todos nós, seres humanos, observamos e reagimos à representação da dor nos nossos semelhantes. As imagens de guerra, de massacres, de torturas que nos entram pela casa dentro, tanto em suporte fotográfico ou, cada vez mais, pela televisão, serão passíveis de desencadear um tão grande choque e repúdio que se torna impossível repetir tais horrores? A própria Sontag reconhece a ingenuidade desse desejo — “Quem acredita hoje que a guerra pode ser abolida? Ninguém, nem mesmo os pacifistas” (p. 13) —, uma vez que, nesta sociedade do espectáculo, estamos todos tão profundamente anestesiados (ou enfadados) que as cenas dramáticas, de tantas vezes reproduzidas, acabam por ser descartadas como “banais”. Sontag confirma que as imagens de guerra estão sujeitas tanto à interpretação como à manipulação e que, por isso, a noção de que esse imaginário poderá ter um efeito dissuasor é ilusório. Apesar de todo o horror que perpassa perante os nossos olhos, a violência é perene e nada se pode fazer contra essa evidência. (Sontag morreu antes de assistir às decapitações em directo, devidamente ensaiadas, levadas a cabo pelo ISIS mas refere o caso do jornalista Daniel Pearl, cuja execução no Paquistão, em Fevereiro de 2001, desencadeou (mais) um fenómeno mediático.)

Para levar a cabo a sua argumentação, Sontag recupera, ainda, uma leitura histórica da representação da dor alheia. Considerando a imagem do sofrimento como circunstância exemplar, a filósofa oferece exemplos concretos e analisa-os, desde a pintura de Ticiano que mostra o esfolamento do sátiro Mársias (1570-1575), uma representação mitológica mas horrivelmente real, passando pelos martírios dos santos (um incentivo ao sacrifício) e culminando nas gravuras de Goya Os Desastres da Guerra (1810-1815), que têm já uma dimensão diferente, documental, uma vez que foram acontecimentos que o pintor presenciou durante as invasões francesas. Sontag refere ainda a importância de uma obra como Os Três Guinéus, de Virgínia Woolf uma reflexão que é também uma resposta às fotografias da Guerra Civil de Espanha que foram dadas a ver à escritora, com um pedido de comentário — e o cinema de Abel Gance que, em J’accuse!, (1919) mostra rostos desfigurados — “les gueules cassées” — de soldados da Grande Guerra. Quanto aos primeiros registos fotográficos em campos de batalha — Guerra da Crimeia, Guerra da Secessão —, Sontag recorda que eram quase todas encenadas, uma vez que as câmaras eram pesadas e tinham de estar fixas e os modelos imóveis. 

O uso da fotografia como possível agente dissuasor culminou nas atrozes imagens dos campos de concentração nazis, quando da sua libertação pelos aliados, no fim da Segunda Guerra Mundial, nas imagens dos ataques atómicos a Hiroxima e Nagasáqui e, mais tarde, na cobertura histórica da Guerra do Vietname; neste caso, Sontag lembra como as imagens tiveram importância como rastilho para os protestos pacifistas e refere duas fotografias icónicas do conflito, a (espontânea) da criança a gritar, nua, queimada por napalm, e a da execução de um vietcongue numa rua de Saigão pelo chefe da polícia, que arrastou o prisioneiro para aquele lugar propositadamente para ser fotografado. Quanto ao Holocausto, e também pela forma como se fixou na mente dos que, ainda hoje, olham para a sua representação com repulsa — em fotografias, livros, cinema —, seria de esperar que tão brutal acontecimento nunca mais se repetisse. No entanto, e apesar da condenação alargada, ainda se dão genocídios na Ásia e em África, o que leva a outra questão colocada por Sontag: será que a violência deixa de exercer o mesmo repúdio para quem está longe (muito ou pouco longe) e que, por isso, se sente, ainda que ilusoriamente, “em segurança”? Ser espectador de calamidades alarga ou não a consciência do sofrimento? E que diferença existe entre protestar contra o sofrimento ou apenas reconhecê-lo? Desde que surgiu o registo fotográfico que a tentação de registar o bem e o mal é demasiado intensa para ser ignorada. No entanto, como é que se escolhe o que se deve mostrar ou não? (Uma questão importante com o advento das redes sociais). E em que medida a revelação de acontecimentos fixados em imagens pode esclarecer ou distorcer e manipular a opinião pública?

Existe ainda outra questão abordada neste livro: se a violência e o sofrimento dos outros se inserem na categoria de espectáculo — basta recordar o circo, na Roma Clássica —, o que poderemos retirar da observação de fotografias “encenadas”, como a famosa imagem final do levantamento da bandeira pelos fuzileiros, em Iwo Jima, ou como a do soldado republicano espanhol a ser atingido por uma bala, captado por Robert Capa no momento da morte, um “instantâneo” que ainda hoje causa controvérsia por não se saber se o homem que cai “sobre a sua própria sombra” foi atingido propositadamente para o “disparo” da câmara do fotógrafo.

Sontag avança com a ideia de que o significado de uma fotografia se obtém numa síntese que inclui o artifício, o contexto e a experiência, alertando para a inevitável distorção que consiste no filtro que é o olhar do fotógrafo. Adianta ainda que não é possível escamotear a atracção erótica que a imagem do sofrimento dos outros exerce sobre muitos espectadores.

Olhando o Sofrimento dos Outros

 continua a ser um ensaio extremamente oportuno, nos dias de hoje. A filósofa morreu em 2004, ainda a tempo de escrever sobre toda a representação do fatídico ataque do 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque, e sobre a aceleração do processo de exposição de guerras e outras catástrofes — uma aceleração que, entretanto atingiu tal intensidade que os códigos deontológicos dos fotojornalistas e dos que, nos 

media

, escolhem as imagens, se alteram a cada instante.

“A familiaridade entorpece as pessoas” disse recentemente Hélia Correia, a propósito dos horrores do nosso tempo. E, nesta frase, estão contidas todas as dúvidas que atormentaram Susan Sontag — a quem um seu amigo, o artista Gary Indiana, chamou “a voz indispensável da responsabilidade moral, da clareza perpétua, a advogada apaixonada da justiça social”. Uma arauta das nossas responsabilidades, na qualidade de seres humanos sensíveis e inteligentes.

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