Os vizinhos da sala n.º 3 de Santa Engrácia

O predomínio do futebol e a profecia de Aquilino acerca da consagração oficial de Eusébio.

A unanimidade dos grupos parlamentares de todas as forças políticas representadas na Assembleia da Republica decidiu, em várias legislaturas, atribuir honras de Panteão Nacional a personalidades com trajetos muito diferentes. Assim ficaram, na sala número 3, do monumento de Santa Engrácia — Humberto Delgado, Aquilino Ribeiro, Sophia de Mello Breyner e Eusébio da Silva Ferreira.

A homenagem a Eusébio não seria consensual se os vizinhos tivessem sido consultados. O repouso eterno no panteão — segundo a lei 28/2000 destina-se a "perpetuar a memória dos cidadãos que se distinguiram por serviços prestados ao país, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana e da causa da liberdade".

Os "Violinos do Sporting" ficaram entre os grandes contemporâneos de Delgado; os corpos vigorosos e elegantes da antiguidade empolgaram Sophia ao contemplar representações mitológicas e alegóricas, no esplendor cromático do mármore pentélico. Mas Aquilino, num dos momentos altos da sua vida, da sua presença pública, no discurso de posse de sócio efetivo da Academia das Ciências, manifestou outra recetividade, abertura lusófona e diálogo multicultural. A cerimónia mobilizou personalidades de todas as áreas políticas e sociais. Salazar constituía uma das exceções. Para surpresa de muitos, Aquilino fez diversas referências ao futebol e, com todas as sílabas, a um dos mais mediáticos futebolistas da época. É evidente que se ocupou da missão do escritor, da dificuldade da profissionalização em Portugal, do magistério da crítica, da luta contra a censura, da crise do livro e da situação crepuscular da literatura, perante a invasão da "rádio, do cinema, da televisão, do futebol e do automóvel".

Exaltou, como era de esperar, a língua portuguesa, "máscara fisionómica da nossa compreensão e o metal líquido em que vazamos os nossos pesares e emoções», «o maior título de nobreza que um povo pode apresentar à barra da História". Defendeu o Acordo Ortográfico com o Brasil. E, numa altura em que já se debatiam independências coloniais e se multiplicavam conflitos para a restituição da India aos indianos, Aquilino não hesitou em salientar que o património da língua portuguesa "não se compara em importância à melhor província ultramarina".

Isolado no extremo ocidental da Europa, com uma ditadura politica, uma polícia política, 24 horas de censura em todos os órgãos de comunicação e outros mecanicismos de repressão sistemática, Portugal, na dissecação contundente e errática de Aquilino, continuava a ser uma "terra das meias solas e do não deite fora, que é mal-empregado". A assistência estupefacta teve de engolir e no final aplaudir que o País "ouvia apenas o chuto nos campeões de futebol e a algazarra beduína das multidões".

Julio Dantas, que presidiu à sessão, não alterou o ritual litúrgico até porque ia recebendo todas as vénias institucionais e pessoais. É melhor citar alguns primores de cortesia de Aquilino que teriam enfurecido Almada Negreiros. “Recordo-me que, à altura em que eu andava a rondar pelo adro de Palas Ateneia, onde ninguém me levou, onde me encontrei não sei como, era uma obra do senhor Dr. Júlio Dantas, Um Serão nas Laranjeiras, que agitava a opinião publica da nossa terra, que não somente o arraial literário". (…) "Eu batia-me, não o digo por cortesania, pelo senhor Dr. Júlio Dantas, que nunca me tinha visto mais gordo".

O deslumbramento de Júlio Dantas deve ter sido incomensurável mas a perplexidade foi óbvia quando, ao conciliar o anedotário dos primeiros jatos interplanetários com as bisbilhotices do futebol, Aquilino e sem qualquer humorismo voluntário acrescentou perentório: «aquela comédia do senhor Dr. Júlio Dantas era ventilada com tanto calor como hoje a elasticidade da perna do amigo Barrigana ou a cadela que foi no Sputnik».

Todavia, não se ficou pelo "amigo Barrigana", um guarda-redes memorável. Incluiu na Mina de Diamantes, entre os mitos quotidianos de Lisboa, "capital do Império, cidade maravilhosa de Ulisses e da Amália", os nomes de Matateu, oriundo de Moçambique, outra vedeta do futebol dos anos 50, e o de Otto Glória treinador brasileiro, pago a peso de ouro, técnico da Seleção Portuguesa.

Já naquele tempo o País estava submetido aos «milagres» de Fátima e engalfinhado nos meandros do futebol. Para alienar as consciências, não discutir a política e esconder as cumplicidades dos negócios. Aquilino reconhecia que a literatura deixara de ser "matéria-prima dos lausperenes nacionais com discursos dos próceres e regalório do gentio". Em face destas contingências não seria despiciendo "ir buscar demiurgos ao futebol e ao hóquei patins". Não lhe "repugnava ver os torsos nus ou moldados em camisolas de malha", promover a consagração dos atletas, «à imitação dos gregos que celebraram os seus discóbolos e lutadores".

Dixit Aquilino, com expressões vernáculas de Vieira e Bernardes e palavras usuais do Malhadinhas, na moldura circunspeta do salão nobre da Academia das Ciências. Entretanto, sempre que lhe apeteceu, lembrou episódios da "casa de hóspedes da Rua do Crucifixo" onde acamaradara com amigos da Carbonária, "gente de aventura e bulha, que não era nada cómoda e naturalmente inclinada à violência". Tudo isto, e outras coisas mais, 58 anos antes da tumulização de Eusébio, no Panteão Nacional de Santa Engrácia.

Jornalista

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