Pode a vanguarda artística ser o acidente de uma senhora de 80 anos?

Quando um Ecce Homo ‘retocado’ por uma octogenária espanhola passa da chacota a um fenómeno, talvez a academia deva discutir a sua inclusão no cânone das artes. É por aqui que avança Rafael Spregelburd esta quinta-feira no Festival de Almada.

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Fúria Avícola
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Rafael Spregelburd é uma das mais originais e entusiasmantes vozes da dramaturgia argentina

Já ninguém se lembra de Cecilia Giménez. Do seu nome, pelo menos, porque a única obra que lhe é conhecida não desaparecerá do imaginário colectivo com tanta ligeireza.

Em Agosto de 2012, correu mundo a sua tentativa de restauro de um Ecce Homo pintado originalmente por um professor de Arte espanhol no Santuário da Misericórdia de Borja, uma pequena povoação na província de Saragoça. Aquela imagem de Jesus Cristo, igual a tantas outras, após a acção voluntária da octogenária haveria de popularizar-se pelo óbvio traço grosseiro e a evidente falta de subtileza que transformou o messias na imagem que muitos descreveram com o esboço de um macaco desenhado por uma criança.

O caso intrigou Rafael Spregelburd, uma das mais originais e entusiasmantes vozes da dramaturgia argentina (e latino-americana e mundial) contemporânea. “Noutra época, isto poderia não ter passado de uma anedota local”, diz ao PÚBLICO a propósito da inspiração para a escrita de Fúria Avícola, peça apresentada esta quinta-feira na Escola D. António da Costa, em Almada, integrada na 32ª edição do Festival de Almada. “É interessante sobretudo pela difusão mediática que torna este acontecimento planetário e que mostra um abandono da realidade e um império do virtual, na medida em que um erro, um acontecimento privado e pessoal de uma senhora de 80 anos quando quer restaurar o Ecce Homo da igreja da sua terra, na prática, o destrói.”

Para além desta consequência mediática, de transformação de um pequeno erro de escassa importância – o valor artístico do Ecce Homo original, pintado no início do século XX, era irrisório – num acontecimento global, Spregelburd confessa-se fascinado com as questões relativas à própria arte que daqui se levantam. Se o gesto da senhora Giménez tinha uma simples “intenção de restauro, museológica, proteccionista, de reparar uma pintura que se apagava quando ninguém à sua volta fazia nada para a salvar”, o autor (e encenador, a meias com Manuela Cherubini) vê neste gesto de intervenção inocente “um acto libertador”. “Na paródia que fazemos da situação”, acrescenta, “trato a senhora com um enorme respeito porque me parece que ela está mais em contacto com o seu desejo do que muitos que se dizem artistas. Mas claro que não se trata de uma obra de arte com um propósito vanguardista; só que é um episódio da História de Arte que, ainda assim, nos coloca perante a pergunta: a arte é melhor quando conserva ou quando rompe, quando quebra o que existe?”

É esta discussão a um nível puramente académico que Spregelburd coloca na boca de dois professores de História de Arte em Fúria Avícola, trocando argumentos a favor e contra a inclusão do caso de Cecilia Giménez no cânone da universidade. “Isto é muito cómico, porque a todos nos dá vontade de rir”, reflecte, “mas às tantas a discussão torna-se muito angustiante”, porque problematiza “o fim destas categorias mais ou menos cómodas a que a Arte se refere entre o Renascimento e a contemporaneidade”. Poderá a involuntária ruptura de Giménez com os modelos que pretende conservar ser, afinal, considerada arte? Deverá a súbita confluência de hordas de visitantes para Borja, uma terra sem qualquer outra atracção turística, ser ignorada? “Não importa o que se faça, se é meritório ou não no território da arte”, lembra Spregelburg, “o mercado saberá exactamente o que fazer com isso.”

É certo que a intenção da senhora Giménez nunca teve qualquer pressuposto artístico, mas o carácter puramente utilitário não fica definido com vínculo permanente nessa intenção inicial. Spregelburd lembra que muitas das estátuas da Grécia Clássica não eram peças artísticas na sua origem, servindo antes para invocar toda a galeria de deuses helénicos (muitas não tinham sequer assinatura, a sua autoria era irrelevante). É o próprio tempo histórico que se encarrega de arrumar as eventuais obras de arte nas suas categorias, embora o autor não deixe de notar que “é interessante que na anedota de Cecilia Giménez a sua estética, muito parecida à das crianças ou da Arte Bruta, alcance uma imagem muito mais potente do que a original, chamando muito mais a curiosidade.” O fenómeno, aliás, levou a que a imagem do Ecce Homo ‘retocado’ fosse depois reproduzida em t-shirts e canecas, altura em que a octogenária começou a exigir direitos de autor. Ou seja, se o Ecce Homo de Giménez foi de início tratado como um embaraço e não passava pela cabeça de ninguém levá-la a sério, o mercado não tardou a confundir o jogo.

“Interessa-me muito esta relação entre a arte e o mercado”, prossegue Spregelburd, “e de que maneira pode a reprodução de imagens gerar dinheiro e poder. Nunca, jamais, na História da Arte uma obra custou tanto quanto custa hoje. Há uma sobrevalorização do valor das imagens que é análoga, creio, ao crescimento da virtualidade do mundo da economia. Nas artes plásticas o valor do original começa a ter quase uma expressão fantasmagórica, porque no resto da nossa vida quotidiana os originais desapareceram. O acesso a uma obra de música, literária ou teatral não foram privatizados (no sentido de poderem ser de posse exclusiva) por uma burguesia. Nas artes plásticas, os objectos tornaram-se de uma possessão fetichista.”

Pinter e Bosch

Tendo iniciado a sua actividade de encenador em 1995, ao trabalhar sobre textos seus mas também de autores anglófonos como Martin Crimp, Sarah Kane e Harold Pinter, foi ao traduzir textos destes dramaturgos que Rafael Spregelburd forjou a sua própria linguagem teatral – “creio que todos os dramaturgos deveriam ser tradutores, porque não escrevo como Pinter, Crimp ou Kane, mas encontrar na nossa língua uma maneira de transmitir o que estes grandes escritores fizeram é um excelente exercício de escrita”, sublinha. Com Pinter, a situação seria particularmente curiosa, uma vez que um pequeno conflito resultou, depois, na sua nomeação pelo autor inglês enquanto tradutor da obra do Nobel da Literatura para a América Latina.

Aconteceu na sequência de um projecto de quatro actores amigos, que haviam decidido cruzar dois textos de Pinter – Betrayal e Old Times –, trabalhados em simultâneo, construindo assim “um universo pinteriano muito divertido”. “Trabalhámos esta adaptação sem solicitar os direitos e sem saber que o Pinter não permitiria. Claro que quando quisemos estrear ele enviou-nos uma carta dizendo que não autorizava, que as obras estavam muito bem como estavam e não precisavam de ser mexidas.” Spregelburd escreveu-lhe de volta, uma carta que considera talvez a sua “melhor obra de prosa”, concordando que as obras não precisavam de ser mexidas, mas que a homenagem ao universo do autor, sem alterar uma só palavra dos textos, pretendia libertar-se de um “realismo televisivo” que até então dominava as encenações argentinas, com gente a embebedar-se com copos de Chardonnay enquanto debitava o texto. “Para nós, as obras de Pinter eram muito mais sanguíneas, viscerais, com mais emoção e loucura. E explicámos-lhe que em determinadas culturas periféricas, como a Argentina, a tarefa das nossas gerações era dessacralizar os monumentos pétreos do dramaturgia mundial e incorporá-los no fluxo da história do nosso teatro.” O autor deixou-se convencer.

Depois, a tradução da sua obra deixaria sérias marcas na própria escrita de Spregelburd, “sobretudo nos anos 90”, admite, dentro de uma linha a que o argentino chama “realismo estranhado”. Foi a base para uma obra que é profundamente influenciada pelo seu estudo de Biologia, Física e Química, e pelo seu interesse desmedido na Teoria do Caos. Daí que não seja raro um discurso extremamente técnico irromper pelo meio de um dos seus textos, como acontecia em A Modéstia, capítulo da sua heptalogia dedicada aos sete pecados mortais a partir da pintura de Hieronymus Bosch, encenada por Amândio Pinheiro para os Artistas Unidos em 2014 – as sete peças encontram-se publicadas em Portugal na colecção Livrinhos do Teatro.

Ao entender que o tempo de Bosch se assemelha à contemporaneidade – “Ele pinta quando cai a ordem medieval, nós escrevemos quando cai a ordem moderna”, compara –, Spregelburd decidiu tomar como rastilho para a escrita uma pintura extremamente simbólica, complexa e moral, e interpretá-la sem “o dicionário com o qual se interpretava a pintura de Bosch, que está perdido e extraviado.” Quis, por isso, olhar os símbolos com os códigos de hoje e redefinir os pecados como “as convenções produto de um pacto social que dita a normalidade e que estabelece determinadas leis que colocam fora do sistema quem não as cumpre (os pecadores).” Assim, entendidos por Spregelburd, os pecados passaram a ser a inapetência, a extravagância, a modéstia, a estupidez, o pânico, a paranóia e a teimosia. Outra toda uma outra forma de colocar os indivíduos em confronto com o poder.

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