Do contrabaixo para o judo, do futebol para o râguebi

Elsa Mendes e Vlady Grikh passeavam-se há uns anos pelos bairros de Lisboa sem grandes devaneios de ambição. Hoje são referências do desporto nacional e têm metas a cumprir

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Nuno Ferreira Santos

"Eu não queria isto para mim. Só pensava: 'Vou-me matar aqui. Se me projectam uma vez, eu morro logo. Fico ali estendida". Foi esse o instinto inicial de Elsa Mendes quando, aos 13 anos, assistiu pela primeira vez a um treino de judo. Corria então o ano de 2010, a jovem de origem guineense tinha sido convidada por "uns senhores do Governo Civil" para conhecer a modalidade juntamente com outros miúdos de bairros problemáticos do concelho de Loures e aquilo que descobriu na sala de treinos do Sporting foi um desporto que, além de lhe parecer violento, tinha a desvantagem de acrescentar ainda mais azáfama ao seu já precoce quotidiano de adulta.

 

 Se acedesse a tornar-se atleta do clube, teria que lidar com treinos em horários incompatíveis com os transportes públicos ente a sua casa no Prior Velho e o Estádio de Alvalade, teria que dedicar-se a uma preparação desportiva que lhe retiraria ainda mais horas aos estudos e aos ensaios de contrabaixo, teria que suportar esforços que a deixariam ainda mais cansada para uma lida doméstica já de si pesada, em que cozinhar para as nove pessoas da família era apenas uma das suas muitas tarefas diárias. Se Elsa superou aquele choque inicial e se foi fazendo judoca, chegando a atleta de alta competição, ganhando medalhas e qualificando-se para o Campeonato Europeu de Juniores que se disputa na Polónia a 18 e 19 de Julho, o mérito é dela, inevitavelmente.

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Mas é também de toda uma estrutura criada de forma institucional em meados de 2010, quando o então Governo Civil de Lisboa lançou o programa de detecção de talentos "Desperta no Desporto" – e se é certo que em 2011 esse organismo foi extinto no âmbito da reforma administrativa imposta pela troika, também é um facto que o seu projecto continuou a funcionar para além dessa data, graças à convicção pessoal do seu coordenador e de todos aqueles que com ele partilham do mesmo sentido de missão.

 

O diplomata que assegurou essa continuidade a título informal e voluntário é Rafael Lucas Pereira, que, numa entrevista ao PÚBLICO em 2011, explicava ao jornalista Luís Francisco: "Procurámos modalidades desportivas que, pelos seus valores e regras, possibilitassem dar formação cívica a estes miúdos”.

 

Agora, quatro anos depois, Rafael admite que a maioria desses jovens ficou pelo caminho, mas orgulha-se daqueles que souberam resistir – no que inclui não apenas os que se vêm afirmando como atletas destacados, mas também aqueles que, tendo feito outras opções de carreira, retiveram para si os valores da moral desportiva assimilados no programa.

 

"A ideia era evitar o absentismo escolar, impedir que estes jovens se associassem a formas de criminalidade, mantê-los no bom caminho", recorda o dinamizador do "Desperta no Desporto". "Começámos com cento e tal estudantes a lutarem por um lanche, já que a maioria não tinha sequer comida em casa, e acabámos com umas dezenas que cumpriram o objectivo e fizeram um bom percurso. Nestes programas, as médias são sempre perigosas, porque a realidade é que este é um trabalho de pesca à linha – o sucesso está em detectarmos o valor de alguém e depois monitorizarmos essa pessoa quase individualmente, para puxar por ela e estimulá-la. É que a evolução tem sempre que ser individual; não há outra forma. Ninguém vai chegar ao topo se não se decidir por si mesmo a trabalhar e a fazer sacrifícios para isso".

 

Tal como Elsa, Volodymyr Grikh também soube seguir essa fórmula. O jovem de origens ucranianas estudava em Camarate quando, em 2010, Rafael o convidou a experimentar o râguebi e, ao fim de vários meses e "1001 desculpas", acabou por comparecer a um treino orientado por duas atletas do Benfica. Futebolista convicto, durante um ano andou de "coração dividido" entre as duas modalidades, mas em 2011 acabaria por render-se à bola oval e ao acolhimento do CDUL.

 

Revelando-se logo de início mais competitivo do que a judoca, devido ao que Rafael descreve como o contraste entre o "laisser-faire da cultura guineense" e a personalidade "mais compenetrada" dos eslavos, aquele que todos tratam por Vlady só não chegou mais cedo à titularidade na selecção portuguesa por culpa da complexa burocracia na atribuição da sua dupla nacionalidade.

 

Enquanto essa não chegava, em 2013 viu até como certo o regresso à Ucrânia para cumprir o serviço militar obrigatório e ingressar nas forças armadas de resistência à Rússia, e, com a típica resignação de Leste, convenceu-se de que seria esse o seu destino. "Acho que tudo na nossa vida aparece no tempo certo. Não podemos fugir a isso", defendia em 2013, de sorriso sereno, na postura hirta a que os seus 1,98 metros de altura emprestavam o ar de uma segurança inabalável.

 

A verdade, no entanto, é que lhe estavam reservados outros combates: foi ficando por Portugal e, logo nos primeiros jogos oficiais pela Selecção Nacional de Sub-20, dois observadores estrangeiros repararam na sua eficiência atlética, pelo que, pouco depois, o jovem fechava contrato com os franceses do Perpignan. "É porque tinha que ser", diz o luso-ucraniano, a dias da partida para o clube francês. "E a arriscar, é agora".

 

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