Mais longe do culto, mais perto das estrelas
Dois concertos de reconhecidos embaixadores da música antiga.
Na semana que passou, os dois concertos em epígrafe, da quadragésima-primeira edição do Festival Internacional de Música de Espinho, com programas distintos e, muito provavelmente, abrangendo “seguidores” de contextos ligeiramente diferentes, revelaram diversos aspectos comuns. Entre eles, o facto dos intérpretes serem “estrelas” - Jordi Savall mais conhecido do grande público do que Hopkinson Smith, ainda assim também uma estrela internacional e agraciada pelos media. Ambos são reconhecidos embaixadores da música antiga, ambos se apresentaram em Espinho como os mais acessíveis “artesãos”, partilhando a sua arte de tocar aliada a um conhecimento profundo sobre os instrumentos, a música e o contexto da sua criação, interpelando o público com naturalidade; ambos se apresentaram tecnicamente bastante mais falíveis ao vivo do que nos seus muito divulgados registos áudio (Savall também com alguma falta de brilho; Smith apenas mais próximo dos inevitáveis deslizes tímbricos de uma interpretação ao vivo).
No caso de Jordi Savall (1941), a primeira interpelação vai para a apresentação dos instrumentos e dos intérpretes - Driss el Maloumi e Dimitri Psonis, a quem foi também dada a oportunidade de se destacarem ao longo do programa - e, a partir daí, talvez a comunicação entre os próprios músicos tenha subido para um patamar de maior comunhão. Origem, formas de tocar, posição do arco (lire d’archet e rebab), peso das baquetas (santur), no que aos instrumentos respeita, mas também fontes musicais preencheram o discurso ágil de Jordi Savall, que quase conseguiu seduzir melhor o público a falar do que a tocar. Sem um único lugar disponível, a plateia aplaudiu o trio de pé, provocando o momento com maior impacto da noite: um primeiro extra que Savall apresentou como uma dança grega, “dedicada a todos os gregos que tiveram a coragem”, coragem essa interrompida por novas e veementes palmas da plateia. Um segundo extra foi também uma dança mas da ilha do Chipre, interpretada numa versão grega e noutra turca.
Um pouco mais solitário no altar da Capela da Nossa Sr.ª da Ajuda, o norte-americano Hopkinson Smith (1946) interpretou um notável programa do período isabelino, tentando modestamente competir com a agitada noite de Espinho, de que sonoros testemunhos ocasionalmente ecoavam do exterior. Com enorme delicadeza, mas também com a livre criatividade com que saudou os presentes numa interpretação dinâmica, Smith apresentou diversos conjuntos de duas a três peças, intercaladas com comentários seus em impecável português. Quem não terá tentado imaginar as três senhoras retratadas por Dowland segundo a descrição tão clara de Hopkinson Smith, quer verbal, quer musicalmente? Perante o entusiasmo do público, antes de informar por gestos que eram já horas de dormir, o simpático alaudista condescendeu ainda em brindar os presentes com as mais famosas lágrimas de John Dowland - a pavana Flow, my tears.
Exemplos como estes dois, protagonizados por tão respeitadas figuras que prontamente se prestam a estabelecer uma firme ponte para trazer o público para mais perto da música, contribuem de forma muito eficaz para simultaneamente abalar a formalidade do ritual do concerto e questionar uma certa tendência simplista para a sobrevalorização de manifestações culturais associadas a serviços de (por vezes duvidosas) pretensões educativas.