Entrevista

“Se a saúde for um edifício, os cuidados primários são certamente no rés-do-chão”

Wienke Boerma é investigador no Instituto para a Investigação em Serviços de Saúde da Holanda (Nivel), onde coordena a área dos cuidados de saúde primários e a recolha de informações sobre este sector para a Organização Mundial de Saúde. Com formação de base em psicologia e especialista em novas abordagens da medicina geral familiar, desde a década de 1990 que se dedica ao estudo dos sistemas de saúde e conduziu um trabalho sobre o desempenho dos cuidados primários em 32 países europeus. Para Boerma, os países só vão conseguir sustentar os seus modelos de saúde se apostarem nos cuidados primários e na prevenção da doença. Mas alerta que nada se faz sem profissionais motivados.

Como é que define o sistema de saúde holandês? Quais os pontos fortes e fracos?
O nosso sistema de saúde define-se sobretudo pela tentativa de integrar serviços para as pessoas mais velhas e para as pessoas com doenças crónicas. É também um sistema focado em ter o doente no centro do sistema. Formalmente, se as necessidades em saúde das pessoas mudam com o tempo, então chega-se a um momento em que não faz sentido continuarem a ser tratadas no mesmo sítio da mesma forma. Se partirmos do princípio de que as necessidades mudam, então devemos focar-nos em dar os cuidados às pessoas quando e onde elas precisam.

Em 2006 fizeram uma grande reforma, altura em que criaram o seguro de saúde básico obrigatório. O que queriam mudar? Era essa ideia de centrar os cuidados no cidadão que estava presente?
Na verdade foi sobretudo uma mudança com propósitos financeiros. Não foi tanto uma tentativa de promover a integração de cuidados, mas mais de controlar a subida da despesa em saúde. A forma de financiamento e a integração de cuidados acabou por ser parte da resposta. Considerámos os três actores, os doentes, as seguradoras e os prestadores de serviços. Ainda que não seja um mercado puro, tentámos que no mercado regulado entre estes três parceiros os doentes pudessem escolher a seguradora para que estas tivessem de competir pelos doentes e isso incentivou a eficiência e a qualidade. Os seguradores também puderam passar a escolher os hospitais com que trabalham e naturalmente escolhem os com melhor qualidade/preço. O papel do Governo é apenas de supervisionar e interferir quando as coisas correm mal. Mas isto acabou por incentivar a integração de cuidados.

Visitámos a cidade de Almere, um caso de estudo a nível internacional na integração de cuidados, mas que teve a vantagem de ser construída de raiz. O que podem os outros locais e países aprender com essa experiência?
A cidade teve origem nos anos 1970 e quando foi desenvolvida as autoridades tiveram de organizar os cuidados de saúde e decidiram que deviam nascer de forma moderna, integrada e focados em centros de cuidados de saúde primários, onde também consta o conceito das residências para pessoas mais velhas ou com algumas doenças como as demências. Para a Holanda o caso de Almere é um modelo e a questão é aprender com essa experiência em locais onde não é possível colocar tudo no mesmo edifício. Aí entra a importância da comunicação.

Como se faz essa reforma?
Não se podem fazer reformas sem a cooperação das pessoas. As mudanças forçadas não resultam. É preciso seduzir as pessoas e isso faz-se criando incentivos, porque este tipo de prestação de cuidados consome tempo. Falo de incentivos financeiros, mas também é preciso criar estruturas que cooperem com as equipas, que as orientem e disponibilizar recursos para desenvolver redes de informação. Na Holanda, as seguradoras também tiveram um papel poderoso porque ao fazerem contratos com os prestadores de serviços, podem escolher as unidades maiores ou com mais qualidade e isso incentivou os profissionais a unirem-se e a trabalharem mais em equipa e com foco em objectivos.

Mas acabam por ter um sistema de saúde caro.
Os custos de saúde da Holanda eram explosivos em 2006 e com esta reforma parecem estar a ficar nivelados. Foi uma boa forma de reduzir a subida da despesa e melhorar ao mesmo tempo a qualidade. Quanto ao ser ou não caro, cabe a cada país decidir quanto do seu orçamento quer dispensar para a área da saúde. Na Holanda é quase 10% do produto interno bruto. É bastante a comparar com outros países, mas podemos dizer que é um bom sistema de saúde, disponível para toda a população e com boa qualidade. Não é um sistema caro, é um sistema que gasta muito dinheiro mas do qual retiramos valor. É preciso ser um país saudável para assegurar este tipo de sistema de saúde.

Que diferenças vê no sistema de saúde em Portugal?
Em Portugal os cuidados primários são prestados por médicos contratados que são funcionários públicos e por isso é mais fácil concretizar mudanças. É o Governo que está aos comandos e na Holanda não é o Governo que está na liderança. Na Holanda, o Governo não pode dizer de um dia para o outro que os médicos de família vão passar a trabalhar em centros integrados com enfermeiros e outros profissionais e vocês em Portugal já têm isso. A vossa situação é mais semelhante à do Reino Unido e devem aproveitar essa base. Agora não podem é existir pessoas sem médico de família ou é impossível melhorar.

Mas depois é difícil concretizar reformas, até porque os baixos salários dos médicos de família são um problema.
Isso é o reverso da medalha. Os nossos médicos, como independentes, têm a capacidade de organizar a sua prática da forma como querem e sem um chefe propriamente dito, apenas com a responsabilidade de terem uma boa performance ou as seguradoras não os contratam.

Porque é que os cuidados de saúde primários na Holanda são vistos como um exemplo internacional?
Temos uma tradição de quase 80 anos, que vem desde a Segunda Guerra Mundial. Os holandeses estão habituados a ir sempre ao médico de família primeiro, nem é bem visto de outra maneira. É alguém em quem confiam e em quem sabem que vão encontrar uma resposta quando precisam. Mas atenção que os médicos de família nos anos 1960 não tinham o estatuto que têm hoje. Decidiram organizar-se para ultrapassarem a ideia de que eram hierarquicamente inferiores. Profissionalizaram-se, apostaram em investigação, num colégio de médicos de família forte, não apenas para defender os interesses materiais da classe, mas para mostrar com evidência científica que têm um valor acrescentado para o sistema de saúde. Os médicos de família na Holanda foram muito bem-sucedidos neste trabalho de mostrar a importância e papel dos cuidados de saúde primários antes dos cuidados secundários.

Que impacto têm os bons cuidados de saúde primários em todo o sistema?
O papel típico dos cuidados primários é estar em contacto com os problemas da comunidade. É com os pés na comunidade que eles devem estar. Não podem existir barreiras no acesso das pessoas aos cuidados primários e também tem de haver confiança, não basta existirem. Não podem existir quaisquer obstáculos, seja em termos de distância, financeiros... Os cuidados primários são o primeiro degrau de entrada no sistema de saúde e funcionam como um comboio. Se o degrau da plataforma para o comboio é muito alto então os mais velhos e doentes nunca vão conseguir entrar. Se os cuidados de saúde forem vistos como um grande edifício, então os cuidados primários são certamente no rés-do-chão e um local de entrada fácil, de preferência sem portas e com alguém que oriente as pessoas dentro do edifício. Os médicos de família podem tratar 95% dos problemas de saúde e em muitos casos nem é preciso medicar, mas sobretudo aconselhar. Só nos 5% urgentes de referenciar é que deve haver o esforço de comunicar e não esperar. É também importante contar com enfermeiros, assistentes, fisioterapeutas, dietistas… O trabalho destes 95% tem de ser visto de forma interdisciplinar, é essa a nossa visão dos cuidados de saúde primários e por isso é que falamos em cuidados integrados.

Mas a cultura dos holandeses também é muito diferente, não sentem por exemplo a necessidade de check-ups frequentes e fazem menos análises e exames.
Também é uma decisão governamental. Se o Governo decidir que a população deve fazer um check-up anual então é isso que os médicos de família vão fazer e é aí que o dinheiro vai ser gasto. Na Holanda não temos essa política nem cultura. Não vamos ao médico simplesmente para pedir exames. Tenho 65 anos e vou todos os anos fazer a minha vacina contra a gripe, mas não faço análises anuais. Faço quando o meu estado de saúde indica que pode existir alguma coisa.

Mas a prevenção não fica em causa?
A prevenção é muito mais do que as análises feitas nos cuidados de saúde primários. Veja-se a obesidade. Claro que é um problema dos cuidados de saúde primários, mas é um problema que se combate muito mais com campanhas e medidas nas escolas e empresas. É a ideia de ter a saúde em todas as políticas. Não é só com análises que se promove a saúde da população. Muitas das verbas devem ser investidas nas áreas dos comportamentos relacionados com a obesidade, álcool ou tabaco. Os cuidados de saúde têm apenas um papel parcial nessas áreas. Os estilos de vida começam na educação. Na Holanda, só organizamos prevenção directamente no âmbito dos cuidados de saúde primários quando há evidência científica de que é de facto efectiva e por isso apostamos em áreas como a vacinação contra a gripe sazonal e rastreios contra o cancro do colo do útero, cancro da mama e colo-rectal, mas apenas para determinadas idades e grupos de risco. Claro que se fizermos testes em toda a população, no limite, apanharemos mais alguns casos, mas não podemos dizer que isso seja custo-efectivo e se gastamos aí então não estamos a gastar noutros lados.

Mas ao fazer essa selecção com o argumento do custo e da efectividade, o que diz quando se refere que a saúde não tem preço?
A saúde não tem preço? Há algo de errado aí. Se tiver 100 euros e uma conta de supermercado de 120 euros vai ter de deixar algo para trás. Nesse caso você toma a decisão. Na saúde acredite que também só vai gastar os 100, mas alguém toma a decisão por si. Por isso é que idealmente deve ser o Estado, de forma transparente, a decidir o que se pode fazer. Não se gastam 120 euros quando só se tem 100 e quem diz que a saúde não tem preço sujeita-se a que alguém de forma pouco transparente e sem base científica decida o que fica por fazer. É retórica política dizer que a saúde não tem preço. É apenas o que as pessoas gostam de ouvir mas não é verdade. Não se podem alocar fundos ilimitados à saúde. É preciso fazer escolhas e quando há evidência científica então, sim, pagar por isso, mas mesmo nesses casos é preciso ter uma visão do todo.

O facto de muitos holandeses terem, além do seguro básico, um outro seguro privado complementar, não significa que a cobertura obrigatória é insuficiente? Isto não introduz injustiça entre quem pode e não pode pagar o seguro adicional?
Algumas pessoas vão sempre achar que não é suficiente. Mas eu, com esta idade, só tenho o básico. Muitos dos que procuram o seguro adicional fazem-no sobretudo pela cobertura dentária e pelas medicinas alternativas. Preocupa-me mais o facto do prémio mensal de cerca de 100 euros para o seguro básico poder ser um pouco elevado para algumas pessoas. Temos cerca de 200 mil pessoas que não estão a pagar, mas antes de 2006 também tínhamos um sistema que separava as pessoas entre pobres e ricos e que criava muitas diferenças.

O que fizeram os vossos cuidados primários pela Holanda e qual deve ser o foco futuro?
Ter uma boa informação sobre como prevenir a doença é ainda mais importante do que assegurar a prestação de cuidados quando já estamos doentes. Precisamos de viver mais anos saudáveis para os sistemas de saúde serem sustentáveis. Hoje em dia sofremos de doenças relacionadas com o estilo de vida e podemos fazer as operações todas que quisermos que nada vai mudar se não apostarmos na mudança desses estilos de vida. Isto não é um problema da Holanda ou de Portugal, é da Europa. Precisamos menos de sistemas de saúde reactivos e mais de sistemas pró-activos para prevenir a doença. Se calhar é altura de evoluirmos de modelos centrados no doente para modelos centrados na comunidade. Nesta transição, o papel das pessoas é cada vez mais importante. Não se consegue uma prevenção efectiva sem o envolvimento das pessoas. Não é o médico de família que perante uma pessoa doente consegue remover os riscos a que se expõe. É o cidadão que tem de tomar consciência dos riscos e de querer evitá-los, dando então o sistema condições para que pare de fumar e pratique exercício.

Que ideias tem do que conhece do sistema português e o que sugere?
Todos os sistemas têm vantagens e desvantagens. Do que sei, nada funciona sem os profissionais de saúde motivados. É importante perceber o que têm os médicos, enfermeiros e os doentes a dizer para fazer uma boa reforma, mas também contar com bons sistemas de informação que ajudem a tomar as decisões com base em evidência científica. Os médicos precisam de saber, por exemplo, quantos diabéticos tratam e com que resultados. São questões básicas. Precisamos de informação para saber a qualidade do que oferecemos e isso serve para os políticos, prestadores, profissionais e doentes. Só com curiosidade sobre o que fazemos conseguimos melhorar. É preciso saber como estou a fazer, como fazem os colegas, como fazem os outros centros de saúde. Tudo começa com informação e a possibilidade de fazer benchmarking. Quem não está satisfeito no seu trabalho também não vai ser capaz de formular estas questões. É por isso que é fundamental a motivação e a liderança, um líder que nos diga honestamente onde estamos e para onde queremos ir. Sem estas duas coisas não há qualidade.